Bom,
mas eu gatafunhava sobre filmes. E o meu
amor por eles. Assim, sem mais nem menos. Veio-me da colecção cinema naquelas
poucas imagens que tinha cada livro e que eu nem desconfiava serem fotos de
filme. As mulheres eram lindas, nunca tinha visto nada assim e lembro-me de
perguntar a minha mãe se eram bonecas e ela que não. Eu dubitativa, e mexem...,
a minha mãe, sorriso a despontar, são pessoas como nós, comem, dormem, falam,
andam. E eu agastada da má sorte de não ter nascido nenhuma na aldeia, são de
Lisboa? E minha mãe, não filha, são todas estrangeiras. A beleza não queria nada connosco. Não era a minha aldeia que estava
errada, era Portugal inteiro cheio de mulheres de xaile traçado e dentes podres,
aos gritos pelos filhos, a levar pancada dos maridos quando calhava e chorando
a má sorte debruçadas no tanque de roupa, mãos raivosas a enxotá-la juntamente
com sabão e sujidade, rosetas de sangue pisado aos gritos na palidez do rosto. À
interrogação muda das outras, elas de olhos no chão, a fecharem decotes e
desarregaçarem mangas, não foi nada, isto passa. E quando se debruçavam para
corar um lençol, um ai a sumir-se na garganta, a blusa escapava da saia e logo
a pele num desmentido, olhem p'ra isto. As outras arregalavam e desviavam a vista
compadecidas, fingindo a normalidade que não havia, a gente estende-te isso que está bom sol, deixa, vai jogar-te ao resto. E rentes à terra, entredentes,
murmuravam para o verde do chão, fingindo desenrugar uma prega, cabrão, olha
o que ele lhe fez com as botas cardadas, a rapariga nem se pode mexer. Aquilo
não é um homem, é uma besta, merecia era um tiro nos cornos.
E
tudo isto acontecia enquanto desancavam nódoas a bater a roupa na pedra a e a
esfregá-la, milimétricas, peça a peça. Mãos
que iam e vinham do alguidar para o tanque, do tanque para o alguidar até que
este vazio; tanques de água que enchiam a pulso; um caldeiro
monocórdico que descia aos caídos a batucar nos tijolos da parede, impactava na
água em gorgolejos atrevidos e afundava inerte para subir em braçadas, opado e
cambaleante, pingos fundos a cantarem no tambor de água escura. Depois, os dois
braços içavam-no, uma mão na asa outra no fundo, e despejavam com alma. Eu, pescoço esticado, ansiosa das gotículas
a respingar-me frescura. A brandura de minha mãe, chega-te para lá que te molhas toda.
Punha o balde no bordo do tanque e sacudia as mãos a juntar os dedos e abri-los
frente ao meu rosto. Negava-se sorrindo e o meu amor dilatava. Estendia os
braços e abraçava-lhe bocados da saia, gosto tanto da mãe. Esponja quase invisível,
eu absorvia por ali, entretida a brincar no tanquezinho que fora bebedouro
de burros e vacas. Talvez por assistir sem freio a esse mundo feminino, na
minha cabeça as maravilhosas mulheres dos filmes passaram como eles, depressa. Que as de xaile traçado e nódoas negras são
eternas.
E
veio isto a propósito de um auditório com bons filmes onde elas não páram e só
entram para ver o Titanic. E entram como são: raras. Já não usam xaile nem
terão dentes podres. Só as nódoas negras. De tanto feitio, as nódoas negras.
Entretanto,
fico por aqui que me desapeteceu falar de filmes.
Amanhã
é que há cinema. Sorry, atraso da bobine.
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