segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Fitas à Vista do Écran

Bom, mas eu gatafunhava sobre filmes.  E o meu amor por eles. Assim, sem mais nem menos. Veio-me da colecção cinema naquelas poucas imagens que tinha cada livro e que eu nem desconfiava serem fotos de filme. As mulheres eram lindas, nunca tinha visto nada assim e lembro-me de perguntar a minha mãe se eram bonecas e ela que não. Eu dubitativa, e mexem..., a minha mãe, sorriso a despontar, são pessoas como nós, comem, dormem, falam, andam. E eu agastada da má sorte de não ter nascido nenhuma na aldeia, são de Lisboa? E minha mãe, não filha, são todas estrangeiras. A beleza não queria nada connosco. Não era a minha aldeia que estava errada, era Portugal inteiro cheio de mulheres de xaile traçado e dentes podres, aos gritos pelos filhos, a levar pancada dos maridos quando calhava e chorando a má sorte debruçadas no tanque de roupa, mãos raivosas a enxotá-la juntamente com sabão e sujidade, rosetas de sangue pisado aos gritos na palidez do rosto. À interrogação muda das outras, elas de olhos no chão, a fecharem decotes e desarregaçarem mangas, não foi nada, isto passa. E quando se debruçavam para corar um lençol, um ai a sumir-se na garganta, a blusa escapava da saia e logo a pele num desmentido, olhem p'ra isto. As outras arregalavam e desviavam a vista compadecidas, fingindo a normalidade que não havia, a gente estende-te isso que está bom sol, deixa, vai jogar-te ao resto. E rentes à terra, entredentes, murmuravam para o verde do chão, fingindo desenrugar uma prega, cabrão, olha o que ele lhe fez com as botas cardadas, a rapariga nem se pode mexer. Aquilo não é um homem, é uma besta, merecia era um tiro nos cornos.
E tudo isto acontecia enquanto desancavam nódoas a bater a roupa na pedra a e a esfregá-la, milimétricas, peça a peça.  Mãos que iam e vinham do alguidar para o tanque, do tanque para o alguidar até que este vazio; tanques de água que enchiam a pulso; um caldeiro monocórdico que descia aos caídos a batucar nos tijolos da parede, impactava na água em gorgolejos atrevidos e afundava inerte para subir em braçadas, opado e cambaleante, pingos fundos a cantarem no tambor de água escura. Depois, os dois braços içavam-no, uma mão na asa outra no fundo, e despejavam com alma. Eu, pescoço esticado,  ansiosa das gotículas a respingar-me  frescura. A brandura de minha mãe, chega-te para lá que te molhas toda. Punha o balde no bordo do tanque e sacudia as mãos a juntar os dedos e abri-los frente ao meu rosto. Negava-se sorrindo e o meu amor dilatava. Estendia os braços e abraçava-lhe bocados da saia, gosto tanto da mãe. Esponja quase invisível, eu absorvia por ali, entretida a brincar no tanquezinho que fora bebedouro de burros e vacas. Talvez por assistir sem freio a esse mundo feminino, na minha cabeça as maravilhosas mulheres dos filmes passaram como eles, depressa.  Que as de xaile traçado e nódoas negras são eternas.
E veio isto a propósito de um auditório com bons filmes onde elas não páram e só entram para ver o Titanic. E entram como são: raras. Já não usam xaile nem terão dentes podres. Só as nódoas negras. De tanto feitio, as nódoas negras.
Entretanto, fico por aqui que me desapeteceu falar de filmes.

Amanhã é que há cinema. Sorry, atraso da bobine.

Sem comentários:

Enviar um comentário