terça-feira, 16 de agosto de 2016

Mistérios de "Fazer Anos"

Vieram mais anos. Cresci.  Cumpri o sonho do Magistério. E, no alvor dos dezoito, minha mãe, vamos festejar os teus anos em casa da tua madrinha. Minha mãe comida de cancro, macilenta, a deitar fora tudo que forcejava por engolir, arrastando um trambolho inchado onde as meias não subiam. E ela num sprint final, consumindo-se em cada gesto de manutenção em casa e na quinta: as crianças, as roupas, as refeições, a escola a horas, a lida; os porcos, as galinhas, os coelhos, o burro....O que é que fica do trabalho das mulheres quando elas se vão?! Nada. Zero. Vendem-se os animais e distribuem-se os filhos, as roupas e as canseiras que eram suas. E vive-se. Porque, apesar do que muita gente pensa, não fomos talhados para a morte, ela acontece-nos. A prova é que só existimos enquanto vivos.
A novidade de outra festa de anos não me alegrou. Respondi que não valia a pena. Mas ela virou-me aquele olhar comprido e sem fundo que lhe chegara com a doença e,entre a ternura e a tristeza balbuciou, não voltas a ter dezoito anos filha; e nessas palavras ouvi, da próxima vez já cá não estou. E esse facto iniludível é que me importava demais. O aniversário dos dezoito anos aparecia-me irrisório, quase um estorvo porque iria cansá-la, quem sabe, retirá-la de mim um pouco mais cedo; celebração idiota, falha de sentido.  Porém, minha mãe queria ainda agradar-nos: dar-me nova festa de anos; levar à feira - onde não voltara depois da minha infância tenra - os meus manos mais novos. Anuí. Fiz um bolo e fomos os cinco na carreira. Mal saímos de casa, talvez por maldade pura, os relógios quase pararam e gastámos um conta gotas de horas a disfarçar a denodada tristeza que insistia em força e nos rasgava os propósitos mais firmes. Que podem existir almoços e lanches pesarosos, apesar dos bolos certos e de sabor requintado. Depois do almoço que não reteve, minha mãe deitou-se a descansar para aguentar a feira que era logo ali,  do outro lado da rua. E à tarde, nós na primeira fila de barracas a comprar um entretém para cada um. Paguei às pressas a notar-lhe, a mãe ficava com a madrinha, eu podia bem trazê-los sozinha. E ela a segurar-se para não cair, não, eu hoje tinha que vir, filha. As ciganas a despacharem-me  condoídas, olhando-a apoiada na banca, ó santinha, vocemecê está carregadinha de doença. Nós cinco de regresso, eu temerosa de não conseguirmos chegar a casa da madrinha, um olho nos garotos que seguiam ordeiros, imersos na dádiva, siderados de encanto nos brinquedos baratos.
Não tenho memória de apagar velas, de sabor ou qualidade de bolos, da ementa do almoço ou do lanche, de alguma prenda que por certo recebi. Daquelas horas frágeis me ficou esta cinza de tristeza a lembrar a alegria que fingimos mal, o desmando do cancro a impôr-se, o beijo no rosto de só ossos e olhos, um corpo que estreitei e desaparecia dos meus braços havia anos, cada vez mais, cada vez mais. E tanto sofrimento incomum.
À noitinha, um táxi foi pôr-nos a casa, a minha madrinha peremptória, eu pago o táxi, vão de táxi sim senhora. E só os meus irmãos voltaram como foram: crianças e contentes.

Mas, pelas três da tarde, eu tinha feito dezoito anos. Por certo frente a um bolo de velas e com fundo cantado de parabéns.

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