sábado, 18 de fevereiro de 2017

Amadeo 1 - Filosofia 0

Oh! A filosofia. Corrijo: oh! Os estudiosos da filosofia! Os que dela se enchem como sapos e não conseguem um percurso definido sobre o caminho de outros. Que, por contingências internas e externas, na flor da vida, também eu aterrei sem pára-quedas no campo dos pensadores. E é claro que me estendi ao comprido. Mas com alguma graça,  dizem-me agora  (há gente assim, gosta de oferecer brasas apagadas).  Em horas exaustas de curta intimidade, tive o ensejo de conhecer uns certos filósofos, privar com eles, desapertar-lhes os cordões das camisas (mas só os de cima, não antevi mais que a linha do pescoço e um ou outro pêlo).  E, submersa nas vagas do saber, jamais larguei o avental de servi-los, incapaz de  me alçar a outra dimensão.  As aulas semelhavam campo demasiado vasto onde a caça tinha mais pernas que a minha aflição de peças soltas, inábil  a juntá-las em coesão. Foi mais tarde, a sós (éramos três, eu, mim e um pensador), que me acertei a entendê-los. Relativamente. E a explicá-los, se é isso possível. Um pseudo trio que deu certo. Ora, de tempos em tempos, gosto de voltar ao local do crime. Sabendo de antemão o resultado: não paga a pena. O que vou contar é pois mais um encontro gorado entre o eu de mim e os espíritos que, iluminados pela filosofia,  pululam faculdades fora. Avante, pois.
Naquela tarde, já me perdera no Museu de Arte Contemporânea. Perder é figurativo sinal da minha desorientação façanhuda perante as telas de Amadeo. Sim, fico criança pasmada nas explosões de cor em tela repleta. É uma amálgama pensada, que sobrepõe e conjuga hastes e linhas orientadoras da percepção. Amadeo puxa-nos o olhar até onde deseja, manda em nós sem darmos conta, conduz. A mim, comove-me o convite, esse inadvertido movimento do olhar que ele trabalhou, a condição criativa que oferece ao contemplador e acompanha as obras. Ajoelho à centelha de  eternidade que reluz no pintor. Olhá-lo em silêncio e osmose, a entrar devagarinho dentro do quadro e da tinta, a ser verde que desmaia no pincel, morango que conjuga sem época, linha que se impõe feita coluna vertebral de máquina, é matéria escassa para nós dois. Embasbaco no artista desde as aulas de Rui Mário Gonçalves. Mas quis o destino e a minha falta de pontaria, que pode ser destino na mesma, que  encontrasse visitas guiadas em excesso e o vocal dos guias a sobrepor. E velhas senhoras, para aí da minha idade, gumes de perfume a entontecer os arredores, todas embonecadas como no “chá dançante” de que falava o Ary e Tordo cantava como só ele. Linguarudas que depenavam tudo que viesse. E, lógico, uma barulheira que os guardas do museu nem tentavam apaziguar. Pelo visto, os guardas cingem-se à tarefa de não deixarem o visitante ultrapassar os riscos no chão que velam a segura solitude  das telas; mal extrapolei um deles para deixar passar uma cadeira de rodas, fui alertada de que, hélas, era chão sagrado, ali é que não podia pisar. Ora bom. Com tais guardadores - contaram-me que a maioria são pessoas requisitadas ao Centro de Emprego, o que não me parece desculpa para o desleixo -, e portuguesas de meia idade empinocadas e palradoras que não chega a entender-se por que ali estão, até parece que a osmose entre nós dois  era impossível. Mas é que o ser humano a si mesmo se surpreende. E embasbaquei tal qual. E sei lá eu porquê, comovi mais que das outras vezes e às tantas tirei os óculos e pronto. E contudo nenhum dos quadros me era novo, aqui ou ali já os tinha visto. Apreciara em tempos o langor meio cubista dos desenhos a tinta da china, a delicadeza quase terna e pueril dos traços de carvão que tanto me surpreendem. E, lá está, comovem.
Começo a preocupar comigo, estou ficando demasiado idosa nisto da comoção. Será doença?! Ora esta.
E afinal não falei da filosofia. Ora, pois não. Pareceu-me mais grato reviver Amadeo. A bem dizer, gratíssimo. Mesmo.

Comigo, a filosofia vem sempre a seguir. 

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