Oh!
A filosofia. Corrijo: oh! Os estudiosos da filosofia! Os que dela se enchem
como sapos e não conseguem um percurso definido sobre o caminho de outros. Que,
por contingências internas e externas, na flor da vida, também eu aterrei sem
pára-quedas no campo dos pensadores. E é claro que me estendi ao comprido. Mas
com alguma graça, dizem-me agora (há gente assim, gosta de oferecer brasas
apagadas). Em horas exaustas de curta
intimidade, tive o ensejo de conhecer uns certos filósofos, privar com eles,
desapertar-lhes os cordões das camisas (mas só os de cima, não antevi mais que
a linha do pescoço e um ou outro pêlo). E,
submersa nas vagas do saber, jamais larguei o avental de servi-los, incapaz de me alçar a outra dimensão. As aulas semelhavam campo demasiado vasto
onde a caça tinha mais pernas que a minha aflição de peças soltas, inábil a juntá-las em coesão. Foi mais tarde, a sós
(éramos três, eu, mim e um pensador), que me acertei a entendê-los. Relativamente.
E a explicá-los, se é isso possível. Um pseudo trio que deu certo. Ora, de
tempos em tempos, gosto de voltar ao local do crime. Sabendo de antemão o
resultado: não paga a pena. O que vou contar é pois mais um encontro gorado
entre o eu de mim e os espíritos que, iluminados pela filosofia, pululam faculdades fora. Avante, pois.
Naquela
tarde, já me perdera no Museu de Arte Contemporânea. Perder é figurativo sinal
da minha desorientação façanhuda perante as telas de Amadeo. Sim, fico criança
pasmada nas explosões de cor em tela repleta. É uma amálgama pensada, que sobrepõe e conjuga hastes e linhas orientadoras
da percepção. Amadeo puxa-nos o olhar até onde deseja, manda em nós sem darmos
conta, conduz. A mim, comove-me o convite, esse inadvertido movimento do olhar
que ele trabalhou, a condição criativa que oferece ao contemplador e acompanha as
obras. Ajoelho à centelha de eternidade
que reluz no pintor. Olhá-lo em silêncio e osmose, a entrar devagarinho dentro
do quadro e da tinta, a ser verde que desmaia no pincel, morango que conjuga
sem época, linha que se impõe feita coluna vertebral de máquina, é matéria escassa
para nós dois. Embasbaco no artista desde as aulas de Rui Mário Gonçalves. Mas
quis o destino e a minha falta de pontaria, que pode ser destino na mesma,
que encontrasse visitas guiadas em
excesso e o vocal dos guias a sobrepor. E velhas senhoras, para aí da minha
idade, gumes de perfume a entontecer os arredores, todas embonecadas como no “chá
dançante” de que falava o Ary e Tordo cantava como só ele. Linguarudas que depenavam
tudo que viesse. E, lógico, uma barulheira que os guardas do museu nem tentavam apaziguar. Pelo visto, os guardas cingem-se à tarefa de não deixarem o visitante ultrapassar
os riscos no chão que velam a segura solitude das telas; mal extrapolei
um deles para deixar passar uma cadeira de rodas, fui alertada de que, hélas,
era chão sagrado, ali é que não podia pisar. Ora bom. Com tais guardadores - contaram-me
que a maioria são pessoas requisitadas ao Centro de Emprego, o que não me
parece desculpa para o desleixo -, e portuguesas de meia idade empinocadas e
palradoras que não chega a entender-se por que ali estão, até parece que a osmose
entre nós dois era impossível. Mas é que
o ser humano a si mesmo se surpreende. E embasbaquei tal qual. E sei lá eu
porquê, comovi mais que das outras vezes e às tantas tirei os óculos e pronto.
E contudo nenhum dos quadros me era novo, aqui ou ali já os tinha visto.
Apreciara em tempos o langor meio cubista dos desenhos a tinta da china, a
delicadeza quase terna e pueril dos traços de carvão que tanto me surpreendem.
E, lá está, comovem.
Começo
a preocupar comigo, estou ficando demasiado idosa nisto da comoção. Será
doença?! Ora esta.
E
afinal não falei da filosofia. Ora, pois não. Pareceu-me mais grato reviver
Amadeo. A bem dizer, gratíssimo. Mesmo.
Comigo,
a filosofia vem sempre a seguir.
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