quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Pruridos e Comichões

Este mundo de subalternidade feminina irrita-me. É isso, i-rri-ta-me. Não sei se já repararam, mas a fonia da palavra irritar é ela mesma uma provocação.  Descende do termo latino irritare e sintoniza com o estado de briga à flor da pele que invade o ser humano em algumas situações. Senão vejamos, a repetição da vogal i com dois erres a dar a mão a cada um (irri), é conjunto  pior que unha a riscar no vidro (e depois ainda dizem que a vogal i é uma vogal doce; é, é). Bendito seja quem assim a inventou para definir o temporário estado de deflagração iminente das nossas boas maneiras. E ontem as minhas vísceras ficaram nesse alvoroço de trovoada que me escureceu o humor. Vou contar.
            Razões pessoais levaram-me a requisitar um serviço numa unidade industrial da minha terra natal. Não era a primeira vez que tal acontecia, a gente do balcão atendeu-me com cortesia e chamou-me pelo primeiro nome antecedido de dona. Ali, sou a D. X; ou Y; ou Z.  Não tenho nada contra. Mas eis que, enquanto esperava a satisfação do pedido, surge um senhor  conhecido.  Que beneficiou de atendimento diverso. Ele não foi o senhor X; ou Y; ou Z. Ele foi  “o senhor professor”. Estava o meu desconcerto já a aquecer, mas ainda em lume brando, quando entra uma professora que toda a gente conhece, a solicitar serviços. E eis que a irritação desbordou. Não surgiu a mesma deferência, “a senhora professora”, antes, tal como eu, foi nivelada pelo nome. Ela foi a D. X; ou Y; ou Z. Mas porquê???! 
Entretanto, aventurei uma desculpa: há muito mais professoras que professores e fazem, por isso, a distinção. Mas então a diferença é numérica e sem relação ao respeito pela profissão exercida... acontece que todas as profissões são de igual respeito desde que bem desempenhadas. A matutar em todas estas questiúnculas,  já estava quase a preferir o costume do norte português que chama doutor a todos que tenham um canudo e acabou. Ora,  não pactuo com isto, sou contra doutores, professores e mais títulos de deferência cheios de “se faz favor” e “vou de recuas para não te dar as costas e de seguida varro o chão que piso”,  que lembra  os indianos da classe mais baixa, os ditos impuros e por isso designados  “intocáveis” (as outras classes sociais não podem  tocá-los sequer). As castas indianas, meus amigos, são uma maldição hereditária.
Mas o que é que queres afinal – pode um leitor mais desprevenido perguntar. Quero tratamento igual entre masculino e feminino e respeito pelos bons profissionais, tenham que sexo tiverem e sejam cavadores, torneiros, professores ou médicos.  Ou et cetera. Entre dois professores presentes, por que razão só o homem é chamado professor?! Por acaso algum professor trabalha mais ou melhor devido ao sexo que lhe coube?  Ou será que só a anteceder o nome masculino a profissão ganha chama?!  Mau, mau. A experiência com  os professores e professoras que tive ao longo de anos, ensinou-me que  a qualidade de ambos vem de outras paragens.
Afinal, ainda que sem prática em tanto caso, vivemos num país maioritariamente católico. Mas Cristo era do povo, tinha pai e mãe humildes, discípulos pescadores, amigos sem estirpe ou linhagem. Ao longo da curta  vida prometeu a todos os homens o mesmo e jamais afirmou ter vindo para salvar alguns.  Que me recorde, não há passagem dos evangelhos onde um sexo se superiorize ao outro. Portanto, nada de imputarmos o mal à religião, o erro é humano. Fomos nós, homens e mulheres, que o criámos e mantivemos por séculos (com a ajuda da instituição igreja, sim; dos homens que a constituíam, quero dizer). Hoje, dá pelo nome de preconceito e muita gente pensa que está erradicado. Colossal engano, as mentalidades resistem à mudança como os portugueses de antanho aos castelhanos. Todas as mulheres, de uma forma ou de outra, sentem e sofrem a lonjura da igualdade homem-mulher. E há ainda quem,  no século XXI, em Portugal, lhes crie um inferno na terra. A violência doméstica é abuso, causa muito dano que se não vê e só a própria avalia.  E mata. Pensem nisto, no primitivismo que ainda existe dentro da espécie.

Mas há situações em que as mulheres são, de hábito,  inadvertidas, elas mesmas sobrepõem os homens, os carregam no colo.  Como aconteceu ontem com o mulherio do balcão.
Oh, bem sei, não havia motivo para tal amargor. Mas apeteceu-me.

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