domingo, 26 de fevereiro de 2017

Confidências

Por vezes solta-se-me a corda que ata um monte de queixas de estimação e desato aos soluços verbais. Não amofine o leitor, é função higiénica e toda mental. Não usa lenços de papel, não funga. Mas vinca. Aferra-me o plissado na carcaça. É pena que não faça moda, o desenho tomou algum interesse. Em tais momentos, o meticuloso mundo das coisas penetra-me em tão desdenhosa  mudez que um mindinho de confidência me soa a delação.  Atardo-me pois nesse pasmo amniótico e de pouco crédito que rodeia os objectos e rói a paciência comum.  Quem sabe um dia acordo e sou uma jarra plantada sobre um móvel a fazer cócegas a um naperon. Ou um canapé que se expande voluptuoso, vem cá (seduz-me ser canapé). Ou um bengaleiro (um bengaleiro de madeira a que nascem folhas e flores, alongo os braços por dentro dos casacos e dos chapéus e boinas, e crio mãos que entregam às pessoas o que me deram a guardar).
Enquanto não chega imobilidade que nos irmane, a rigidez atenta das coisas  aponta-me olhos sérios em cara inteira. Coisas que eu  sobrelotei de outras coisas sem uma delicadeza a interrogar, posso?; móveis que envelheci de papeis e fotos, sorrisos que não existem ou são outros, petrificados e cheios de dentes a cariar por dentro dos vidros. De súbito, soam-me todos dentro da cabeça, invadem-me de queixas. A estante desfigura de livros, o que eu aguento de enciclopédias e como me pesam as histórias dos romances, carrego o mundo que existe e mais o que os escritores inventaram, aquilo é gente que escreve  histórias sem medida e não avalia o peso das palavras, e tantas há que me pesam e doem, e gritam nas prateleiras que é um dó. Tu porque as compras se as lês uma vez só e a mim me pesam toda uma vida?! As cadeiras de braços choramingam a sacudir o torpor de anos, estamos dormentes, fartas desta posição e do carrêgo e moíção de tanto osso humano; queremos pôr as mãos nos bolsos e deixá-las lá, faz-nos esta mercê. Perfilados na sua prateleira, os cds irresolutos, já não nos ligas, qualquer dia saímos por aí a tocar e cantar para quem nos queira ouvir. E até a janela risonha, amua queixosa, não sou a mesma, já não gostas de mim, há quanto tempo não me abres ou floresces...qualquer dia caio do cortinado de tanta tristeza em mim haver.
E eu que vinha de corda lassa, pronta a deixar cair de cabeça uma data de tristementes, dou com este sururu. E está visto que não posso. Não vou agora deitar-me a enfastiar ainda mais a mobília. Talvez um chá príncipe os acomode. Ou um sol de dia inteiro temperado com atenção.

Vamos ver.

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