quinta-feira, 5 de maio de 2016

"No Tempo da Escola"

Lídia levou-me pátio fora e, debruçada no gizado artístico  das casas ganhas no jogo da macaca traçado no pátio, avisou, schiu, cala-te. Depois olhou-me nos olhos e disse alto, a apontar as bolecas, já viste as casas que tens de saltar? Vá, experimenta lá – meteu a mão ao bolso, tirou o pedacinho de tijolo raso que lhe servia de malha,  fez pontaria e ele aterrou certeiro no coração do pisa-pisa, os olhos a empurrarem-me, experimenta. Revejo-a nos seus caracóis escuros, pele branca e sardenta, o olhar em desafio. Lídia sempre foi e não foi da minha idade. Havia nela um lado de sabedoria autónoma e madura que inspirava confiança. A minha amiga conhecia-me a falta de pontaria e o gosto por saltar casas seguidas. Sabia que se atirasse a malha por mim, eu não resistia e ocupava-me a fazer boa figura, não pisar  riscos, saltar bolecas, apanhar a malha e voltar.  Sou forçada a reconhecer, nessa primeira abordagem, fui afastada do comunismo pelo jogo da macaca. Mas, na volta da escola, a dúvida picava-me uma vez e outra, interpelava-me redobrada, em comichosa atenção. Seguíamos os três na força de calor das três da tarde, quando renovei, o que é ser comunista. Lídia e Luís reagiram em simetria. Parados. Frontais. Os dedos suados a apertar o metal da asa das malas  esmorecidas. Então, Luís aproximou-se tanto de nós que me pisou os dedos que espreitavam a biqueira da sandália, pôs-nos os braços em volta e, num encosto de cabeças, disse baixinho, isso não se pode dizer, ouviste? Perante a minha intrigada mudez continuou, acho que ser comunista é ouvir a rádio moscovo e ser contra o governo; o meu irmão mais velho ouvia e teve que ir a salto para França; desapareceu que nunca mais soubemos dele. E quando eu ia a perguntar o que era ir a salto Lídia rapou do seu ar mais peremptório e apresentou-me o ultimato, não perguntas mais nada e acabou. Jura que não falas do comunismo a ninguém, mesmo que seja para perguntar. Jura, exigiu.  Jurei de pronto, sem pestanejar, e pareceu-me que descansava. Mas o compromisso não me envolvia o pensamento. Durante anos, imaginei o irmão de Luís a fugir aos saltos, à frente da polícia, até França. Sempre em passos à gigante como no jogo da mamãzinha dá licença, mas em corrida, erguidos ao alto. E avaliava se, de tanto saltar, não teria sido apanhado pelos guardas ou mesmo morrido no caminho. Acrescia ainda a dificuldade de “passar a fronteira a salto”, lugar onde muita gente “era apanhada” e que eu imaginava serem paredes muito altas e difíceis de escalar. Ali, bastava à polícia um estender de mão para agarrar os fugitivos. Portanto, qualquer fronteira era digna ratoeira montada às fugas. Quanto à rádio moscovo, por mais que girasse bem devagar o botão das estações no rádio de meus pais, nunca consegui descobri-la, minha mãe a sapatar-me a mão controleira, deixa isso, ainda estragas o botão. Na escola, os chefes de estado mantinham-se a ladear o crucifixo, mas deixei de lhes ser devota; antes os olhava num misto de relutância e respeito, semelhante a quando minha mãe chamava para me aplicar umas palmadas merecidas. Se meu pai lutava pelos mais pobres e era preso, antevia neles uma culpa ainda sem formulação. Os traços que antes me pareciam de rectidão foram mudando: outrora, considerava-os uns distintos senhores, agora eram dois homens sem compaixão pelos desvalidos; intimamente, fui-me recusando a rezar por eles como ordenava a professora. E se ela o fazia connosco, oferecia a oração por esses que eu desconhecia e, como o meu pai, lutavam no anonimato. Sabia agora que, tal como os pides, andavam disfarçados entre nós. Eu ignorava uns e outros, mas, nas fúrias religiosas e sacrossantas da minha mestra, que exigiam sacrifícios, terços e mistérios de joelhos e braços em cruz, pedia e pensava nos segundos, crente num Deus que me ouvia.

Em casa, a vida seguia a  norma. De extraordinário, só as descrições quotidianas que minha mãe somava em nocturno exercício de aparo  e minúcia de relojoeiro, eu a adormecer noite após noite com o seu perfil na retina, debruçado sobre a mesa, um cabelo ou outro fora do gancho a pendurar junto ao rosto. E a mão correndo sozinha ao longo da folha, como se as palavras em espera o dia inteiro, ansiosas por entrarem em casa e se porem à vontade. Tempo de tristeza que entranhava e lhe crescia colada ao corpo qual lismo em parede de poço, a turvá-la de olhos e figura, arrepanhando centímetros.  
E um dia em que comprava o milho das galinhas, o merceeiro chamou-me de parte. Tinha um papel branco na mão, dá à tua mãe e bico calado, e enfiou-mo dentro da blusa. Saí tremente e desabalada, correndo pela vala que ladeava a estrada e o cantoneiro limpara há pouco, ainda deserta de ervas e lixo, a apertar o braço sobre a blusa para não deixar cair o recado.  Entrei e coloquei-o sobre a mesa, encostado na jarra de flores. Assim, a mãe via-o da porta. Depois lembrei-me do milho e voltei atrás, vagarosa e pensativa, ajuizando sobre o assunto: era carta de meu pai, eu conhecia-lhe a letra alta e esquinada, traçada de ângulos. O que diria meu pai. Estaria quase a sair. Podíamos visitá-lo. Cheguei a casa e fui espreitar o carimbo do selo. Mas não havia carimbo nem selo. Fiquei cismada. Como é que o merceeiro me entregava uma carta sem selo nem carimbo, o meu pai estaria numa prisão tão especial que as cartas nem precisavam de selos?!

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