quinta-feira, 12 de maio de 2016

"No Tempo da Escola"

Com os dias a encompridar e assistidos por vagas de calor e luz, a fertilidade das árvores ajoujava exalando o cheiro adocicado da madureza, íman de insectos que zumbiam em descarado poderio. Tacteando com suas patas peludas, buscavam nos frutos invisíveis frestas, ou aprestavam diligências em exercício de micro cirurgia, para depois se concentrarem num sugadoiro exibicionista. Lá no alto, as cegonhas, leque aberto no azul, circunvagavam molemente zanzando sem direcção, inconsciência feliz que fazia tempo para a noite. Foi nessas horas lassas e a desgarrar que a nova imagem de Luís se me impôs. Aos poucos, apercebi-lhe a falta de vontade em se apequenar a estar comigo. E emudeci a vê-lo chegar e desaparecer, moída de saudade, reconhecendo-me completa aselha para competir com a liberdade da bicicleta, a mãe parada à porta e aos gritos, uma mão inquieta de gotas, a revirar e enxugar no avental, ó gaiato de um cabrão, tu não vês que a bicicleta é muito grande para ti; se me chegas a casa com algum escalavrão vais ver, levas uma coça de cinto e dou-te banho em álcool puro. Mas na loja adoçava a voz a gabá-lo, o meu Luís tem um jeito de mãos que só visto, arranjou sozinho a bicicleta do irmão, o pai não lhe pôs um dedo. E aprendeu a andar num ai, nunca caiu. E se ela é alta...
Aprender a viver faz-se assim, quase sempre a contragosto. A nova aprendizagem imiscui-se na nossa vida a empurrar hábitos e saberes antigos, a encostá-los à parede numa pressão de ou tu ou eu, de que sabe o resultado. Em decisivo  impudor, o novo cria o seu espaço sobre a violação da ordem fixada e apresta-se à estocada final enquanto,  zonza, desnorteia sem lugar. Foi assim que, durante as férias, aprendi outra forma de dar espaço. A alegria do meu amigo com a bicicleta era tão genuína que, apesar de alguma tristeza, não me ocorreu zangar-me. Imaginava que Lídia voltaria igual no fim das férias, ou que, pelo menos depois de uns tempos, seríamos quase as mesmas. Mas intuía que já não havia o mesmo Luís de antes. Borboleta a lagartar no casulo, culpava a bicicleta. Desconhecia a sedução do chamamento irisado do mundo. Incapaz de pensar que Luís era um garoto precoce e chegara sempre primeiro que eu a todas as mudanças da idade. Mas sabendo com segurança, porque lho lera nos olhos, que dera entrada ao  mundo. Esse abrir portas despertou nele uma ânsia de liberdade tão expressa e fremente que eu lhe temia a força como se teme um ciclone em dia de vendaval. Se em Lídia receava a arrebatação paradoxal, Luís luzia um prazer tão desmedido que me atrofiava. Que, na minha inépcia, invejava. O meu amigo  descobrira que tinha asas e voava sem cansaço.
No mês de Outubro, voltámos os três à escola e observámo-nos uns aos outros, ocupados a expulsar sentires envergonhados, tecidos no comprimento da ausência. Lídia espigara e estava da minha altura.  Eu tinha as tranças mais compridas, caiam-me dos lados quais cordas de puxar caldeiro de poço, as mulheres na rua, o cabelo é que lhe tira a força toda, assim ela está, só pele e osso; vai tudo pó cabelo, essa é que é essa. Mas quando Luís saiu de casa, mala na mão, quase julgámos ser outra pessoa. Tinha crescido mais de um palmo, estava muito mais alto que nós e vestia calças compridas. Olhámos uma para a outra atónitas e exclamantes, se calha já não quer andar com a gente. Mas ele veio vindo a balançar a mala e quando chegou perto sorriu do modo antigo, os olhos contentes  e ocupados, a gastarem-se por inteiro nas nossas figuras. O sorriso só não era bem igual porque denotava a vaidade nas calças. E nós desvanecidas, a contemplá-lo como se fora uma senhora de Fátima em aparição, tás tão bonito. Ele de súbito acanhado, pondo uma mecha de cabelo no lugar, olhos a desmentir a indiferença das palavras, ahnn...a minha mãe diz que já posso vestir a roupa do meu irmão.
Chegados à escola foi aquela alegria do reencontro de todos com todos e a curiosidade acerca dos novos alunos. As garotas mostravam as novidades de malas e cabelos. Algumas, felizes, deitavam as mãos ao pescoço e abriam o fecho dos fios com crucifixo que as mães tinham autorizado nesse dia introdutório, só para mostra. Exibiam-se e comparavam-nos entre elas a passá-los de mão em mão, a avaliarem a diferença de peso, verificarem inscrições de medalhinhas, saboreando a vitória da posse. os rapazes procediam de modo semelhante mas discutindo arcos, piões, berlindes, carrinhos de plástico.  

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