A
maioria das crianças entusiasmou nas
calças do Luís, mas foi encanto de um dia só. À noite, a mãe sovou-o gritando revoltas
que se ouviam em minha casa, malvado gaiato, quem é que te deu ordem de as
levares para a escola, este filho é a minha perdição, as calças são só para
sair meu estupor, pensas que tenho dinheiro a correr por uma telha, pensas.
Especada na rua de casa, ouvi as pancadas
e arrasto de móveis que julgava serem cadeiras e mesa. Supus que acontecia o
que Luís chamava o jogo do gato e do rato na porrada: se ela começava a bater
antes de o agarrar, ele fugia em volta da mobília da cozinha com a mãe no
encalço, cada vez mais enfurecida, até que ambos se cansavam. Do meu amigo não ouvi palavra. Mas o dia seguinte foi
lapidar, voltou aos calções agora demasiado curtos, pernas e braços a desmedir
como se não pertencessem ao tronco. Trazia um olho negro, as pernas com vergões
e olhava em frente sem desfitar. Respeitámos.
À
tarde, depois da escola, Luís pousou a mala, pegou na bicicleta e desapareceu.
Voltou a casa pela tardinha, sentou-se à mesa e fez os deveres. Com ligeiras
alterações, no resto do tempo de escola primária seguiu padrão idêntico. Continuava bom aluno e era a muleta da professora, dá-me isto, estende-me
aquilo; compra-me assim, compra-me assado; rega-me as flores, muda o vaso mais
para lá. A mãe na sua obtusa gabarolice
de mercearia, o meu Luís, desde que apanhou umas arroxadas por mor de vestir as
calças do irmão, está manso que nem um borreguinho. E minha mãe com simpatia,
não sei como aquele garoto consegue ser tão atilado.
Entretanto,
Lídia vegetava noutra classe. Ocupava outra fila de carteiras, mas
juntávamo-nos a todos os intervalos e continuámos a fazer-lhe os deveres de que
se desleixava cada vez mais, parecendo punir a professora em todas as pancadas
que recebia. Fazia da escola uma penitência e assoberbava no sobrinho a massacrar-nos com
pormenores do crescimento que nos desinteressavam. E Maria Laura, minha
parceira dilecta e pelos vistos tão precoce como Luís, deu-me a novidade ao
ouvido, já tenho maminhas, vamos à casa de banho e mostro-te. Mas eu indecisa
no fedor, não pode ser noutro sítio? Enrugou a testa e depois num repente, tá
bem, amanhã digo ao meu pai para me vir buscar mais tarde e mostro na tua casa,
a tua mãe não está lá pois não? Neguei e confirmou, vou contigo à tarde.
Pareceu-me um pouco como Luís, orgulhosa. Espargia satisfação.
Maria Laura cumpriu. Foi a minha casa e, mal corri o trinco na porta, puxou
blusas acima e exibiu os mamilos cor de canela a entumescer, vês, vês. E depois
a descer a roupa com desembaraço, a minha mãe diz que estou a ficar mulher. E
tu? Neguei. Mas ela animadora, vai-te acontecer. Lembrei a lisura das minhas auréolas encostadinhas nas costelas e duvidei em voz alta. Ela segura, acontece a todas
as gaiatas, tem de te acontecer - e para me descansar -; eu era como tu. E quando porfiou de insistir nas
pilosidades, perdi a paciência para ver mais coisas que não tinha nem me
interessavam, espreitei o caminho pelo postigo e apressei, o teu pai está a
chegar. E ela saiu disparada, lápis e livros a sacolejar dentro da mala,
a criança vencendo a rapariga de uma assentada.
Entretanto,
minha mãe alternava os serões de escrita com o afã de tricotar para meu pai.
Peça atrás de peça, à luz de petróleo foram surgindo blusas e gorros, luvas e cachecóis, meias, e até uma manta rectangular que fazia os meus encantos
coloridos. Quando os olhos se me perdiam nas malhas que passavam de uma agulha
a outra, a obra a crescer certamente por encanto - à revelia de minha mãe, experimentara mudá-las de agulha e além da extrema dificuldade, nada acontecera -, perguntei se a prisão era fria. Assentiu desditosa. Nessa
noite custou-me adormecer, a resposta de minha mãe roía-me como sapato apertado no pé. Pus em dúvida a minha imaginação e desejei visitar meu
pai, certificar-me. Mas só quando Dezembro se apresentou na sua vulgar frialdade, o carteiro trouxe a autorização para duas visitas ao preso 274 no dia de Natal.
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