segunda-feira, 9 de maio de 2016

"No Tempo da Escola"

              À tardinha, depois de minha mãe esperançar na missiva e a prantear lendo-a vezes sem conta, soube que meu pai estava no forte de Peniche, lugar de estranho nome. Fiquei ciente de que ninguém podia saber da carta ou de quem ma entregara e a mãe esclareceu que nos tinha chegado por correio pessoal, através de ignotos amigos de meu pai.  Por isso, não trazia carimbo ou selo. Atardei-me um bocado a matutar como teriam conseguido vê-lo se estava preso. Restava-me a imaginação. Talvez um desses amigos morasse perto e ele lhe tivesse passado a carta pela rede de capoeira que circundava a prisão. Entretanto, a minha lamentosa mãe acrescentou, vamos a ver se pelo Natal nos deixam ir visitá-lo; agora não podemos. Intriguei com a conversa, faltavam  vários meses para o Natal, por que razão poria dúvidas na visita. Porém, à vista da tristeza que a prostrava, engoli a pergunta e assenti em silêncio.
            Entretanto, os dias foram correndo e, na escola, o quotidiano impôs a sua força de hábito. Por vezes ouvia cochichos, “o pai dela está preso”, afirmação que não me abalava senão por me perguntar quem teria revelado o segredo. A verdade é que o facto de não ter quebrado a promessa, mas haver gente que sabia do meu herói familiar, me agradava. Dava-me certa aura de diferença, eu era a única que tinha o pai preso sem crime que se visse. Além disso, Lídia mostrou-se à altura e desenvolveu um muro protector à minha volta acudindo mal alguém entredentes, “comunista”, e assim dispensava respostas que eu não podia nem sabia dar. Quando, anos mais tarde,  quis saber se o fizera instada pelo avô ou por amizade, olhou-me no fundo dos olhos, a ironia a despontar no meio sorriso de monalisa e virou costas. Julgo que juntou os dois motivos, mas a romper caminho estava o coração feito enxada. Na altura, nada vi. Quem sabe, nesse momento a monalisa pensou que eu não valia a pena, desejou não ser minha amiga. Em quantas circunstâncias a descoberta da verdade se atrasa. Demasiadas vezes, o sentido permanece oculto enquanto vivemos e decidimos. Mais tarde, quando um acontecimento já é arquivo, a memória compraz-se em rectificações e leva-o pela mão até ao lugar certo. E deixa um peso no coração, um amargo de boca, um mau estar sem direcção.
Quando a escola acabou  e chegaram as férias grandes, fiquei em casa com a mãe, esquecida de ter pai, a imagem a esvanecer, reavivando se chegava notícia. Em cada mês, madrinha Carmelita era novidade que nos chegava pontual.  Por canseira da idade e maior liberdade em minha casa, ficava para dormir e regressava passados uns dias. E, durante a estadia, minha mãe reanimava. Gastei os três meses das férias num angélico egoísmo filial que se fez desumano de tanta impiedade. Usufruí sozinha do caudal de ternura materna desejando que meu pai se eternizasse na prisão de Peniche e, para me desculpar, imaginava-a cheia de distracções. Fui impermeável ao semblante doloroso de minha mãe, aos olhos lacrimosos que usava em manhãs mais difíceis, à sua magreza escanzelada que flutuava pela casa. Em tempos de penúria, jamais me perguntei como sobrevivia sem o ganho de meu pai. No meu prato nada faltava de habitual e a minha vida era céu sem nuvens. Tinha-a só para mim. Suprema felicidade. Passados tantos anos, hesito em me desculpar com o egoísmo infantil. Era apenas o egoísmo que me acompanha passo a passo, ao longo da vida, e me impede a visão desapaixonada do mundo.  O mesmo egoísmo que me põe antes de tudo e me venda e veda o entendimento das coisas na sua crueza.

No ritual de férias, os meus amigos debandaram. Lídia reprovara e  estava de vigia ao sobrinho enquanto a irmã fazia trabalhos sazonais, o marido levado para uma recruta em Mafra. Luís, depois de dias e dias que eu acompanhara  à esquina de casa armado em serralheiro, dá-me lá o alicate, tira daqui este parafuso, aperta com força o travão, arranjara morosa e amorosamente uma bicicleta velha de um dos irmãos e não parava em casa. Vivia arrepiado de vento, os cabelos da franja todos para trás, completamente fora do meu centrípto de ditados e cópias. Se insistia a chamá-lo, aparecia montado no seu cavalo, dava duas voltas ao monte a exibir-se, as pernas por dentro do quadro e o selim a descoberto, e anunciava com a voz a perder-se na aragem, tenho de ir ali. E não voltava.

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