domingo, 19 de fevereiro de 2017

Desgovernos de Família

Num certo pressentir, atrasei-me para o curso de filosofia. Espreitei e deparei com um mar – seria mais um lago - de cabeças brancas e olhar mortiço. Invadiu-me um prenúncio de agastura. Mas pensei em preconceito, malevolência retorcida do meu ser. E subi a um lugar vago. Sentei-me a correr fechos que rangiam no silêncio cortado pela voz que perorava lá à frente. A incomodar, portanto. Atentei na figura e não me pareceu grande coisa o que dizia. Mas, acabada de chegar, fiz tábua rasa do momento. Ajeitando o bloco de apontamentos, circunvaguei a minha vizinha da esquerda, uma das poucas cabeças em caracóis castanho natural, lábios vermelhíssimos e em coração, olhos piscando ao sono. Para não incomodar, abandonei-a àquela luta semi-consciente de pestanas e pálpebras que parecem às vezes perseverar em fechar-se e nos invadem de desejos estrambólicos de, ai quem me dera uma cama, cinco minutos e adormecia como um anjo que não há nada de maior apetite que um plano horizontal, mesmo aqui, à vista de todos. E enquanto a minha vizinha estava nisto, desviei para a conversa da oradora. Sem proveito. Inibo-me de citar nomes ou assunto, mas sempre acrescento que do filósofo em estudo, ao fim de duas horas certas conheci nomes de obras na sua temporalidade e em power point. O resto foi o descalabro das relações pessoais do autor em análise, amizades porque sim e porque não, das curiosidades sobre ele; e de si mesma, oradora, com a matéria em causa. E confinámos: uma salganhada entre o que pertencia à individualidade pessoal do autor e à da própria oradora.
Tratava a sessão de analisar a importância de um filósofo complexo e que, portanto, não estudara durante o curso. Pensava eu que, mercê de quatro horas em que alguém mo explicava, podia haver uma iniciação ao seu vocabulário específico que talvez possibilitasse um depois com a obra. Qual! Arredondei a vista pelo silêncio e, lá à frente, mesmo na primeira fila, uma senhora loira e bem posta, fina de tudo quanto há, pendulava ora à frente, ora atrás, com intervalos de esforço na vertical que, mal se percatava, descambavam a repetir oscilações. Pobre pescoço. É certo, a oradora merecia o involuntário mas evidente despautério. Porém, o meu outro vizinho, agarrado a um molesquine todo pipi, afincava em escrita de nem sei o quê, que assunto não chegou a haver. Pensei, é um poeta que aproveita e verseja. E deitei olho à página. Eram frases corridas, em letra feia de mais e a entortar em diagonais disfarçadas de linha. Nenhum poeta escreve assim. Entretanto, a oradora lançava-se a mostrar fotografias de férias pessoais próximas ao lugar de trabalho do pensador em estudo, e entremeava com afirmações do género, não digam que não são bonitas; ou relatava as peripécias que viveu quando lhe visitou o lugar de trabalho; ou outras virtualidades sem qualquer virtude ou relação com aquilo que ali nos levara. Incapaz de versejar, dei com um senhor cheio de tiques, não sei se adensados pela má sessão, se por ser mesmo assim. Entrou depois de mim e, logo após sentar-se, esticou quanto pôde o indicador e com o médio e o polegar em pinça rigorosa, empenhou-se a tirar caspas, dedos embrenhados em cabelo farto. Era operação digna de filme, meticulosa, exacta (um bocadinho nojenta). Quando mudou de lugar e se aproximou de mim reparei que na gola e mangas do sobretudo até ao cotovelo havia um  mar de películas brancas. Mudou de lugar, mas não de actividade. Talvez um linic e mãos amarradas atrás das costas resolvessem o assunto. Duvido. Os tiques são uma respiração nervosa, não será assim tão bom pará-los.
Entretanto, passou um tempão em que o autor em questão e a questão do autor, ausentes. A oradora empreendia agora a falar de editores com quem ela se dava como Deus e os anjos e a importância de ambos e outros berloques bons para ela só. Então, corri os fechos de novo e guardei o material. Soube entretanto pela boquinha em coração que por acaso tinha também lindos olhos castanhos, que a senhora era professora convidada e pertence à Universidade de Évora. Ai Alentejo, as pessoas que tu albergas, não tens vergonha?!
E quando uns garotos da última fila saíram  mortos de riso, apressei o passo atrás deles. Já ao fecho da porta, ainda a ouvi, estão a sair mas eu vou já acabar...

Mas esta gente da filosofia que tanto apregoa a reflexão não tem consciência de si?! Em que mundo vive tanta incompetência chapada?! Bem sei, a senhora tem mais duas horas para a redenção. As minhas, não vai ter. 

2 comentários:

  1. Pois aqui temos mais cultura bafienta... Percebo que tudo se passa entre gente importante... A minha amiga anda por lugares suspeitos e o que espera? Como dizia o Saramago no seu discurso do Nobel...«a pessoa mais inteligente que conheci não sabia ler» (cito de cor) Gosto da sua visão trágico-cómica!!!

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  2. ...eu de inteligente está visto que tenho pouco:).

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