A noite que tudo envolve cinge-nos por vezes à sequência estagnada das horas, o pensamento a assistir-lhe, lúcido e meio morto. Porém, a dada altura, o relógio como que sincroniza a desejo, a roda do tempo desemperra e as horas deslizam.
A contragosto da cerração de cortinados, a janela desenhava um quadrado de vaga claridade quando o relógio me fez a vontade e deixou entrar as sete. Saí pé ante pé, a mana ainda adormecida. Na sala de refeições, sentei-me habitual, a entremear alimento do espírito e do corpo, enquanto as meninas de serviço, uma elegância que só visto, me tiravam pratos atrás de pratos, num vaivém que cansava só de olhar. Mal me levantava a ir buscar um pãozinho, um doce, uma fruta, mais leite, mais café…lá me voavam prato e talheres com guardanapo e tudo. Mas não sou mulher de desanimar à mesa, arrematava nova dose e fazia de conta que não era nada. Quando entendi, fui ler no terraço e espreguiçar os olhos na paisagem.
Pouco depois, saímos contentes de tanta hora por abrir. Havia um tempo de tudo só para nós e, à parte as peripécias com os bilhetes de metro que não validámos, e eu ter embicado direitinha a um fiscal que por acaso até nos ensinou e não multou nem nada, o dia valeu a pena. Ele para mim, tem que validar o cartão na entrada do metro. E eu em estúpido solilóquio, mas a carruagem não tinha nada por fora onde validar isto…. Insisti, tem a certeza que é lá fora, é que não vi nada quando entrei. E a pedir testemunho à minha mana, tu viste. Ela a acabar com o quid pro quo, não vi, mas também não procurámos, deve lá estar. E eu desejando sair para olhar a carruagem com mais atenção. Mas quando na gare, não havia nada junto às portas (o senhor assegurara, “à entrada”) e desanimei para o lado, mas afinal onde é que isso está. E a mana toda dextra, sem me avaliar a extensão da venda, vamos ver lá em cima, ele disse na entrada. Eu para dentro, bolas, que parva. E assim chegámos à claridade dos Aliados onde, finalmente, andei num autocarro panorâmico indicado pelo funcionário do posto de turismo. Foi bom ouvi-lo em início de conversa num inglês comercial e alinhado e, mal nós, "portuguesas", logo ali, caídinha e a rigor, a pronúncia do norte, carago.
Achei o máximo passear à torrina do sol, em autocarro esbraseado, os turistas a bufar, leque na mão, rosto de pimento vermelho a escorrer aflições. Fora de brisas e ares frescos. Para não perdermos o hábito, o bom Deus brindou-nos com a continuidade climática. E nós duas a ganhar bronze de camionista. Fomos até Serralves que a mana conheceu e eu a afogar saudades em pázadas de verde. Não sei dizer quanto gosto daquela alameda de árvores, sombra de abraços copados. Já vi muita árvore e mais bonitas que aquelas, mas é a elas que prefiro, arreigada na sensação de já ter por ali andado que tempos a gostá-las. Só pode ter acontecido noutra encarnação, porque no inteiro desta vida perfiz quatro visitas. Quem sabe fui jardineira ou varredora de folhas mortas para aqueles lados. Desta vez, apenas assomei à Casa de Chá para mostrá-la, mas as glicínias, sem um assomo de flor, trepavam muito recolhidas em seu verde circunspecto. Pareciam penitentes guardadas em recato trepador; e, do meio do calor e da luz a entornar na clareira, pensei em igrejas frescas e escuras confissões.
A contragosto da cerração de cortinados, a janela desenhava um quadrado de vaga claridade quando o relógio me fez a vontade e deixou entrar as sete. Saí pé ante pé, a mana ainda adormecida. Na sala de refeições, sentei-me habitual, a entremear alimento do espírito e do corpo, enquanto as meninas de serviço, uma elegância que só visto, me tiravam pratos atrás de pratos, num vaivém que cansava só de olhar. Mal me levantava a ir buscar um pãozinho, um doce, uma fruta, mais leite, mais café…lá me voavam prato e talheres com guardanapo e tudo. Mas não sou mulher de desanimar à mesa, arrematava nova dose e fazia de conta que não era nada. Quando entendi, fui ler no terraço e espreguiçar os olhos na paisagem.
Pouco depois, saímos contentes de tanta hora por abrir. Havia um tempo de tudo só para nós e, à parte as peripécias com os bilhetes de metro que não validámos, e eu ter embicado direitinha a um fiscal que por acaso até nos ensinou e não multou nem nada, o dia valeu a pena. Ele para mim, tem que validar o cartão na entrada do metro. E eu em estúpido solilóquio, mas a carruagem não tinha nada por fora onde validar isto…. Insisti, tem a certeza que é lá fora, é que não vi nada quando entrei. E a pedir testemunho à minha mana, tu viste. Ela a acabar com o quid pro quo, não vi, mas também não procurámos, deve lá estar. E eu desejando sair para olhar a carruagem com mais atenção. Mas quando na gare, não havia nada junto às portas (o senhor assegurara, “à entrada”) e desanimei para o lado, mas afinal onde é que isso está. E a mana toda dextra, sem me avaliar a extensão da venda, vamos ver lá em cima, ele disse na entrada. Eu para dentro, bolas, que parva. E assim chegámos à claridade dos Aliados onde, finalmente, andei num autocarro panorâmico indicado pelo funcionário do posto de turismo. Foi bom ouvi-lo em início de conversa num inglês comercial e alinhado e, mal nós, "portuguesas", logo ali, caídinha e a rigor, a pronúncia do norte, carago.
Achei o máximo passear à torrina do sol, em autocarro esbraseado, os turistas a bufar, leque na mão, rosto de pimento vermelho a escorrer aflições. Fora de brisas e ares frescos. Para não perdermos o hábito, o bom Deus brindou-nos com a continuidade climática. E nós duas a ganhar bronze de camionista. Fomos até Serralves que a mana conheceu e eu a afogar saudades em pázadas de verde. Não sei dizer quanto gosto daquela alameda de árvores, sombra de abraços copados. Já vi muita árvore e mais bonitas que aquelas, mas é a elas que prefiro, arreigada na sensação de já ter por ali andado que tempos a gostá-las. Só pode ter acontecido noutra encarnação, porque no inteiro desta vida perfiz quatro visitas. Quem sabe fui jardineira ou varredora de folhas mortas para aqueles lados. Desta vez, apenas assomei à Casa de Chá para mostrá-la, mas as glicínias, sem um assomo de flor, trepavam muito recolhidas em seu verde circunspecto. Pareciam penitentes guardadas em recato trepador; e, do meio do calor e da luz a entornar na clareira, pensei em igrejas frescas e escuras confissões.
Contudo,
a surpresa mais agradável veio da Casa de Serralves onde entrei pela primeira
vez, a atravessar-lhe a história de raspão. É só uma casa vazia, dirão. Mas muito interessante, acrescento. Li depois que o proprietário, Carlos Alberto Cabral, a
herdou e que a traça era diversa. Dei uma olhadela à casa primitiva e tinha
outro ser, era menos mundana e decerto não servia os mesmos intentos. Que ele a
foi melhorando, fazendo-desmanchando, fazendo-desmanchando,
fazendo-desmanchando, ao longo do tempo, é história indiscutível. Que
essa transfiguração, apesar do empenho sustentado do arquitecto português José
Marques da Silva a assegurar-lhe a uniformidade dentro da mudança e decerto
acudindo a muito capricho, passou por decoradores e arquitectos franceses de renome,
também é factual.
Só
podia ser endinheirado, aquele senhor sortudo e gastador. Quis no exterior um
parente anão dos jardins franceses. E está lá. Podem desdenhar, ah é um
arremedo, e assim e assado. Não me interessa nada. É lindo e pronto. E visto
daquela sala ampla, toda vidro de janela, no cenário de árvores a misturar
verdes, a sua geometria intensifica. E eu patética (de quatro; sim, de patas, isso
mesmo), a olhá-lo. Tenho porém de reconhecer, esta casa deixa-me um bocadinho
de mal comigo que embirro solenemente com gente que anda por aí a copiar as
magnitudes parisienses só para armar em importante. Bem que penso isto, mas não
é que gosto dela na mesma?! Que martírio, não ser convencida pelos factos.
Dizem-me, é novo riquismo, é kitsh e tal. E eu mudo-me de armas e bagagens para
a crença e peremptória, NÃO A-CRE-DITO.
Portanto,
quem quiser factos vai a Serralves e visita a Casa. Conta-lhe as banheiras e os
espelhos, as colunas e o mais. Depois, avalia isso em euros e faz uma
estimativa assisada. Por mim, tudo bem. Que, desobrigada de tais apetrechos,
vou passear-me por ela – ou pela memória que deixou - como me aprouver.
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