quinta-feira, 9 de julho de 2015

Intervalo na História da Viagem ao Porto

As manhãs são o meu leit motiv, a beleza do meu quotidiano. Desafogo na claridade que devém luz, nas casas a acordar pelo lado de dentro, o exterior da cal em semi morte, ainda pasmado no sono. E depois há todos os sons que as anunciam, chinelos a bocejar pela casa, torneiras imunes à preguiça, lestos chuveiros. Lá fora, pássaros apressados a sair do ninho como se precisem ir para a fila no Centro de Saúde quando o mais certo é pousarem em árvore próxima ou numa parede de trepadeira, a saudar o sol. Pela manhã, qualquer lugar tem sua panóplia de cheiros com horário; se clareia, sobreposto à dormência dos cheiros animais a que falta calor difusivo, reina o cheiro natural dos lugares, a terra e asfalto, ou à relva regada de véspera. São ainda cheiros frescos, o próprio asfalto emana um odor suave. Mas o sol traz odores com sabor dentro, enquanto o asfalto se enche de vapores  de gasóleo apressado, nas cozinhas cheira a pão torrado e a café; e há uns laivos que perpassam, restos de banho que vão e voltam, frescura de unguentos de lavagem que se misturam ao cheiro de cabelo molhado e corpo a colar na roupa. 
Dependendo do amor que temos às matinas, há a pressa ou o vagar. E porque todo o novo dia me é caro, sou nelas vagarosa. Como compete à linguagem do prazer. Amo o verão descalço nos meus pés, e haver neles o refresco do granito. Corto o pão a lembrar-me de outros tempos, num quotidiano que, quem sabe, recrio diária e solene. Memória de nós duas acordadas  na casa com cheiro a cama. Nós duas e um ritual com lume de chão:  espetavas a fatia de pão com um garfo, afastavas a cinza e punha-la a corar de um lado e depois do outro. Entretanto, ias batendo uma gemada que misturavas na cevada que assentara na chaleira de barro desviada do lume, tu a resmungar porque ela se babava e um rego de café escorrendo lento, numa hesitação repetida até à cinza, a fervê-la brevemente, fcheeee. Eu olhava-o vaga, empenhada em decorar nomes. Por fim, barravas a torrada e servias-me o pequeno-almoço, enquanto eu estudava história e ia mastigando, entretida a ler pormenores que não saiam em teste mas tanto me chamavam das suas letrinhas pequenas, em notas de rodapé onde, uma vez por outra, alastravam nódoas engorduradas. Desse formigueiro de palavras a que colegas e professoras não faziam caso, ficaram-me nomes como, os ilotas, hábitos bons de Dario rei dos Persas, a Mesopotâmia de nome atractivo, a lei de Talião que aprendia com estupor, os cartagineses povo comerciante e para mim idêntico ao merceeiro da aldeia, lápis atrás da orelha, que, para se distrair de perigos marítimos e riqueza acumulada (para mim comércio era sinal de boa fortuna) tinha parado a ensinar-nos a numeração e as contas. E os hunos, maus como as cobras e porcos em demasia, que deitavam sobre a sela os bifes que iriam comer crus e moídos após a viagem (devo ter lido isto nas tais notas de rodapé, o certo é que, ainda hoje não os suporto; deviam ser bastante javardos, cheirar só a sangue azedo e andar sujos até dizer chega. Ainda por cima, cultivavam o hábito de decapitar gente a torto e a direito). Espero não me cruzar com o descendente de um huno, ou serei obrigada a mudar de passeio. Quando te contava estas raridades, não comentavas, nunca saberei se acreditaste em alguma. Para mim, eram verdades seguras. Que não se duvida do que vem nos livros.
            Com tais memórias, como é que posso dormir uma manhã na cama? Não posso. Não sei como é. Não consigo. No Porto ou em qualquer lugar, levanto-me cedo. Estou à coca do relógio, aguardo as sete. Incrivelmente, mesas cheias de iguarias e ainda nada me soube como a margarina nas tuas torradas com travo de fumo. Mas todos os dias experimento. Será por me faltarem os livros de história e mais o que contavam sobre os ilotas e os penates que eram deuses caseiros, coisa que não entendi nos romanos, tão espertos tão espertos e tinham deuses que não saiam à rua.

            Achas tu que eu devia estudar história de novo…hummm 

Sem comentários:

Enviar um comentário