A
livraria Lello é a filigrana do Porto monumental. Basta cruzar-lhe a porta para
constatar o trabalho delicado e de pormenor neste habitáculo de livros a que o
neogótico dá o tom. Bordada a vários fios, impõe-se ao olhar em primores de
madeira lavrada que lhe criam dois pisos
abertos mediados, mais ou menos a meio, pela
originalidade da escadaria que é, ela mesma, com sua ponte dos desejos a ligar
as duas laterais superiores e seu encantatório de degraus em meia lua vermelha,
obra bem casada com candeeiros e vitrais.
Ali, na rua das Carmelitas, os livros não são o trunfo. Que eles estão lá, por
todo o lugar e a forrar paredes também elas recortadas em madeira fina de redondos
delicados. Senhores livreiros, peço desculpa, os livros merecem esse templo de
bom gosto e nada há que melhor lhes sirva, estão a contento. Mas dentro desses
armários poderiam estar cântaros de barro, panelas de ferro, foices e outras banais
ferramentas de trabalho. Que a beleza continuaria no lugar. Digna de ser vista.
Meditada. Dá-la-íamos por mal empregue em objectos tão de uso, mas sobressaltava-nos
a mesmíssima rara beleza. Esta atitude é o mínimo de respeito que devemos a
Francisco José Esteves, engenheiro que a concebeu; e aos Lellos, irmãos proprietários
que a custearam (mea culpa, elidi os demais).
Em nome dos livros e dos olhos que por ela se derramaram cativos (ali passam
muitos olhos fingidores, que não se apegam), muito obrigada.
Entramos e o prazer instala-se no olhar. Ressaltam-nos as minudências em ogiva do corrimão, encimando a
elegância fininha de colunas a fingir, delicadeza de ossinhos de bebé a
repetir-se na ponte que curva insinuante, qual amurada de barco, e se continua em todo o piso superior. Que aquela ponte dos desejos é um inexplicável, tem balanço
de gondola. E se o tecto do rés-do-chão – que é o avesso da escadaria e do piso
superior – nos pareceu renda de bilros em trabalhada madeira, o do piso superior
é a maravilha de um vitral a azular a todo o comprimento. E a divisa da
livraria posta ali, em beleza luminosa, “Decus in Labore”. E ficaria eu de nariz
no ar, não fora ter parado a enlanguescer na parede do fundo, tão bonitinha e
preterida pelos fotógrafos de esquina. Aquela janela rasgada à rua é de uma
elegância orgânica, cada elemento nasceu potência que ali deveio acto e chegou
à sua natureza. Seguindo Aristóteles, atingiu a perfeição possível. Admirá-la,
é recreio dos olhos.
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