quarta-feira, 15 de julho de 2015

Casa de Serralves

Gosto  de casas. Dá-me prazer observar como respiram, concentradas em seu jeito natural. Por isso, foi quase um milagre poder desfrutar das casas Milà e  Batló, em Barcelona. Achei-as de esplêndida finura, cinzeladas a arabesco de conto de fadas, terna nuvem de desenho animado antigo, mesclada de maravilhoso. A sua natureza é o mundo de faz-de-conta que nos habita, respiram fantasia e transpiram ilusão. Contudo, são casas que cumprem, foram habitadas. Guardam desgostos e canseiras, grandes problemas e alegrias da existência, e nas  camas dormiram-lhe mulheres de elegância cetinosa e depilada, sobrancelha em arco e olhar às vezes gelado e não fadas benfazejas de asinha transparente. Os homens chegavam-lhes embrulhados em cachemira, a sobraçar pastas leves; talvez também uma bengala solene, castão engastado, a compor o quadro. E o omnipresente chauffeur perfilado, recto e servil, a conduzi-los a penates. Algures no tempo, alguém lhes chamou lar e nelas houve “nãos” retumbantes que evolaram de chaminés singulares e “sins” inaudíveis, rastilho de fogos incendiários.
Ora, na Casa de Serralves nada disto é possível. Toda a sua sugestão se expressa na arquitectura. O mesmo é dizer, não há sugestão: há linhas e formas e volumes que se conjugam na luz e seu jogo. Mais nada. E isto é real e palpável.
Se recuarmos à sua história compreendemos-lhe a emancipação. Porque é uma casa emancipada. Senão vejamos: foi herdada em 1925 pelo segundo conde de Vizela, Carlos Alberto Cabral. Era o tempo das fortunas burguesas a buscarem estatuto. Carlos Alberto, burguês afortunado e com fortuna, herdou a propriedade e a casa de sua avó. É possível que  alguma coisa na quinta lhe lembrasse as casas e a panorâmica dos jardins franceses que frequentava. Ou seria apenas o sonho da posse. Quiçá a vaidade  a misturar os dados. O certo é que pensou em modificá-la de acordo com os canônes franceses e para o efeito se rodeou de um bom arquitecto do Porto, José Marques da Silva, e de decoradores e arquitectos franceses de renome. O resultado final de acertos e composição foi feliz: uma casa leve, em art déco, ditame de moda francesa. Inédita e a assombrar o Porto. Pelo meio ficaram obras e mais obras, tentativas de acertar o edifício antigo com a parte nova em crescimento contínuo, mercê de basta correspondência com os franceses. Marcas da insatisfação do proprietário que geria o excesso opinativo dos contratados, cada um ignorando o trabalho e sugestões dos outros. Em 1935, depois de quatro anos em remodelações e acrescentos, o arquitecto francês Portneuve vem ao Porto e visita a obra. De seguida, exige  a demolição da casa original e a mudança das escadas de acesso ao piso superior. Dir-se-ia que não pactuou com o mau gosto,  contributo que foi decisivo  na unidade harmoniosa do imóvel. Portneuve tornou-a uma melodia. Talvez devido à guerra, este novo projecto só deu entrada na Câmara Municipal em 1943. Mas ela aí está, graciosa e desejada em seus tons rosados, poesia de pedra ao fundo do jardim.
Em 1925, o proprietário tinha trinta anos. Portanto, a construção da casa durou cerca de duas décadas. Ora, não há caprichos tão longos e muito menos na maturidade. A Casa de Serralves foi antes um objectivo porfiado. Enquanto a gente comum sonha educar os filhos, dar-lhes um curso, Carlos Alberto Cabral, casado e sem descendência, sonhou uma casa “último grito” e, como qualquer pai, vigiou-a nos mais ínfimos pormenores da modernidade. Uma obra para o futuro. Com o seu aval. Como e quanto a gostou não podemos saber.  Sabemos que preferiu vendê-la a quem a conservasse  inalterada – condição para efectuar a venda -, a deixá-la a sobrinhos perdulários. Pai que acautela o futuro dos filhos não faria melhor.

Tanto cuidado com a casa e tão pouco nela viveu! Será que chegou a ser um lar?!

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