Gosto de casas. Dá-me prazer observar como
respiram, concentradas em seu jeito natural. Por isso, foi quase um milagre
poder desfrutar das casas Milà e Batló, em
Barcelona. Achei-as de esplêndida finura, cinzeladas a arabesco de conto de
fadas, terna nuvem de desenho animado antigo, mesclada de maravilhoso. A sua natureza é o mundo de
faz-de-conta que nos habita, respiram fantasia e transpiram ilusão. Contudo,
são casas que cumprem, foram habitadas. Guardam desgostos e canseiras,
grandes problemas e alegrias da existência, e nas camas dormiram-lhe mulheres de
elegância cetinosa e depilada, sobrancelha em arco e olhar às vezes gelado e
não fadas benfazejas de asinha transparente. Os homens chegavam-lhes
embrulhados em cachemira, a sobraçar pastas leves; talvez também uma bengala solene,
castão engastado, a compor o quadro. E o omnipresente chauffeur perfilado, recto e servil, a conduzi-los a penates. Algures no tempo, alguém lhes chamou lar e
nelas houve “nãos” retumbantes que evolaram de chaminés singulares e “sins” inaudíveis, rastilho de fogos incendiários.
Ora,
na Casa de Serralves nada disto é possível. Toda a sua sugestão se expressa na
arquitectura. O mesmo é dizer, não há sugestão: há linhas e formas e volumes
que se conjugam na luz e seu jogo. Mais nada. E isto é real e palpável.
Se
recuarmos à sua história compreendemos-lhe a emancipação. Porque é uma casa
emancipada. Senão vejamos: foi herdada em 1925 pelo segundo conde de Vizela,
Carlos Alberto Cabral. Era o tempo das fortunas burguesas a buscarem estatuto.
Carlos Alberto, burguês afortunado e com fortuna, herdou a propriedade e a
casa de sua avó. É possível que alguma coisa na quinta lhe lembrasse as casas
e a panorâmica dos jardins franceses que frequentava. Ou seria apenas o sonho
da posse. Quiçá a vaidade a misturar os
dados. O certo é que pensou em modificá-la de acordo com os canônes
franceses e para o efeito se rodeou de um bom arquitecto do Porto, José Marques
da Silva, e de decoradores e arquitectos franceses de renome. O resultado final
de acertos e composição foi feliz: uma casa leve, em art déco, ditame de moda francesa. Inédita e a assombrar o Porto.
Pelo meio ficaram obras e mais obras, tentativas de acertar o edifício antigo
com a parte nova em crescimento contínuo, mercê de basta correspondência com os franceses. Marcas da insatisfação do proprietário que geria o excesso opinativo dos contratados, cada um ignorando o trabalho e sugestões dos outros. Em 1935, depois de quatro anos em remodelações e acrescentos, o arquitecto francês Portneuve vem ao Porto e visita
a obra. De seguida, exige a demolição da
casa original e a mudança das escadas de acesso ao piso superior. Dir-se-ia que
não pactuou com o mau gosto, contributo que foi decisivo na unidade harmoniosa do imóvel. Portneuve tornou-a uma melodia. Talvez devido à guerra, este novo projecto só deu entrada na Câmara
Municipal em 1943. Mas
ela aí está, graciosa e desejada em seus tons rosados, poesia de pedra ao fundo do jardim.
Em
1925, o proprietário tinha trinta anos. Portanto, a construção da casa durou cerca
de duas décadas. Ora, não há caprichos tão longos e muito menos na maturidade.
A Casa de Serralves foi antes um objectivo porfiado. Enquanto a gente comum sonha
educar os filhos, dar-lhes um curso, Carlos Alberto Cabral, casado e sem
descendência, sonhou uma casa “último grito” e, como qualquer pai, vigiou-a nos mais ínfimos pormenores da modernidade. Uma obra para o futuro. Com o seu
aval. Como e quanto a gostou não podemos saber. Sabemos que preferiu vendê-la a quem a
conservasse inalterada – condição
para efectuar a venda -, a deixá-la a sobrinhos perdulários. Pai que acautela o futuro dos filhos não faria melhor.
Tanto
cuidado com a casa e tão pouco nela viveu! Será que chegou a ser um lar?!
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