quarta-feira, 29 de julho de 2015

Princípios Fora do Verbo

E o ti João debruçado para o poço, olhos perdidos na fundura enquanto o caldeiro batia distraído nas paredes e enchia molemente, a boiar sem balanço, coitadinha da criança.
As vizinhas conheciam Natividade de trás para a frente. Sabiam que era brusca de corpo e mole de coração. Vinham para um dedo de conversa sobre a miséria lá de casa, certas de saírem com um regaço de feijão no avental, uma cesta de damascos, uma quarta de leite em pó, um resto de sopa da panela com concha e tudo. Enquanto isso, o ti João fumava o seu cigarro fininho colado a cuspo, a chupá-lo de olhos no lume e mão na tenaz de ferro, a Sissi enrolada aos pés a sofrer-lhe os desassossegos amorosos, um puxar brando de orelha, uma festa na barriga, um ventinho de fole a impedir-lhe o ronronar. Olhar mergulhado nas chamas, isolava das conversas. Porém, quem lhe observasse de perto o brilho manso dos olhos, apercebia o raio de orgulho que os atravessava.
O correr dos anos trouxe uma brandura gorda a Natividade e fez mais coxo o ti João. Quando a garotita da Caseta Roubada entrou na escola, Natividade tomou-a à sua conta. Nas manhãs friorentas, tratava de espreitá-la e encontrava-a suja e a tiritar no poial da escola, em abraço apertado ao talego com os lápis e o caderno e puxava-a para o lume a resmungar, para que sais tão cedo. E os olhos caninos da garota a seguirem-na, gosto de estar ao pé de si, ti Natividade. E ela a recuperar o mau modo enquanto arredava um moxo, sai de cima de mim gaiata, ainda te queimas, senta-te ao lume sossegada e come lá a torrada. E estendia-lhe a mão da esmola, a preferência da miúda a aperreá-la. Mas Luisilda tinha-lhe aprendido o jeito. Sentava-se quieta a mastigar, a contrição dos olhos a seguindo-a por todo o lugar.
À tardinha, a velha enchia-se de repentes bruscos e metia-lhe na sacola um pedaço de pão e queijo e uma fruta apanhada da árvore, avisando surdamente, comes isto antes de chegar a casa, ouviste. E à noite, a enfiar-se nos lençóis, resmungava, não consigo engordar a gaiata, encho-lhe o prato ao almoço, dou-lhe o mata-bicho, ao sol-posto ponho-lhe o pão no cesto…tu queres ver que aquele coirão já lhe dá vinho e come o que mando daqui. E o ti João a reflectir, quem sabe…
E até a professora lhe descobriu o segredo. Certa manhã, a mente ainda atormentada por um feixe de ralações caseiras, arrancou-se à molhada de desditas particulares e  atirou-lhe sem derivações, a senhora gosta da Luisilda, dona Natividade. A velha parou um décimo de segundo e, sem alterar movimentos, arranjando o redondo do lume, ó minha senhora, gosto o quê. Gosto como gosto das outras gaiatas, ora essa. Tenho é pena dela, tão magrinha e com aquela mãe. E a professora num meio sorriso, a espreitar-lhe o rosto, é muito esperta a garota. Vai ver, faz a primária de uma penada. Nas contas é a melhor e já ensina os outros. E as rugas da Natividade a açucarar, os olhos um tudo-nada agradados. Mas logo a voz enxotou pieguices tontas, quero cá saber dessas coisas, eu não sei uma letra e governo-me. De súbito, as rugas a endireitar, que é isto que nos deu, nada de molezas. A professora insistindo, escusa de negar, gosta dela, sim. A senhora não tem mais família que o ti João, que mal há em gostar da Luisilda. Olhe que a garota bem precisa de quem olhe por ela. E como tia Natividade num mutismo de burro velho, desandou para a escola, num  até logo que sumiu por entre estalidos das achas que chispavam.
À hora dos desabafos nocturnos, Natividade, olhos postos no ti João, se a gente pedisse a gaiata à mãe… O velho calado, mastigando a ideia, dando-lhe voltas na mente, não sei, ela tem pai e mãe, Natividade. E à expressão da velha, a apalpar terreno, olha, experimenta falar primeiro com a miúda. Ela pode não querer…não chega tu gostares dela. E a nossa vida também fica outra, não te esqueças disso.

Ainda sentada na cama, Natividade ajeitou-lhe a dobra do lençol  a afagar-lhe o corpo sobre a roupa e rematou velho, tu conheces-me, vamos que a gaiata quer vir e depois a mãe não a deixa. Não. Vou mas é falar com a mulher amanhã. É sim, ou sopas. Depois, decidiu a mão e apagou o candeeiro. O colchão chiou  sob o peso do corpo e o guizo metálico das maçanetas da cama foi amortecendo no silêncio escuro do quarto. E o mundo aquietou. Lá fora, no breu, os ralos tomavam conta da noite. Vigias em euforia.

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