quarta-feira, 8 de julho de 2015

A Cerda de que Somos Feitos

O homem põe e Deus dispõe. Ainda que não seja bem assim, as expectativas que goram deixam um amargo que não desfaz com caramelos. Na Casa da Música não aconteceu o que esperávamos: o concerto para violino de um qualquer autor polaco feriu-nos (me) os tímpanos. A spalla da orquestra a despedir-se dela com a interpretação como solista num concerto difícil e exigente, originário do seu país. A opção pareceu-me bem. Mas os violinos têm aquela particularidade de me bulir com os nervos se encarniçam. E o concerto foi feroz: em crescendo, um frenesim enlouquecido do arco sobre as cordas que fez com que ela e o spalla substituto – ocupava o seu lugar na orquestra – a dada altura, tivessem de aparar as cerdas desprendidas do arco (não consegui evitar a comparação com a situação em que a espada se parte na luta). Sou uma desentendida musical, mas parece-me que a dificuldade da peça – admito que também o seu ser, já reparei que os povos de leste criam música que raia as vibrantes noites de trovoada e primam por um aparato sonoro sem insinuações, estridência quase dolorosa – terá levado a mestria a suplantar a sensibilidade musical. Ora, já me foi dado escutar solos de violino divinais. Bom. A senhora, muito ovacionada, saiu banhada em flores.  O reconhecimento  foi bonito, a dignificar público, artista e orquestra. União de plausível última vez. A coincidência  agradou-me. Manda a verdade que se diga, nos concertos a que antes assisti, jamais alguém se acercara dos executantes a oferecer flores. Mas é merecido gesto a quem nos levou tão longe e sem peso, usando essa mistura de tempo, esforço e génio que é a arte.
E afinal nem gostei assim tanto da sala, nem entendi o propósito de uma primeira fila quase siamesa com o palco. Nós, na terceira correnteza de lugares, ficámos um bocadinho incomodadas de pescoço (é claro que a confiança da mana em mim levou a que nos sentássemos em lugares errados, mas pronto, ninguém reclamou). Dizia uma portuense expedita e da casa, “as melhores filas são a G e H”. Guardámos o conselho na gaveta do “a haver” e sorrimos à sua simpatia; foi ela que nos informou do adeus da spalla e nos fez breve resenha da sua vida pessoal e profissional (as cidades são aldeias maiores).
A primeira surpresa adveio do comportamento informal dos músicos. Chegámos cedo e vários se encontravam já sentados, a conversar e a rir. Habituada a um ritual de entrada conjunta e silenciosa, um estar sentado muito direito com conversas apenas sussurradas e essenciais, olhos de preocupação quase terna com o instrumento que tocam, pareceu-me aquilo um despudor, transparência perniciosa. Podem pensar, e que é que tem que entre cada um a seu gosto e de sua vez, é mais democrático assim. Respondo, é uma questão estética. Há uma mise em scène que falha na Casa da Música e que é necessária no apontar da raridade. Os sentimentos que a música provoca são solenes. Como a religião, ela abre dentro de nós, em cada vez, um tempo novo e originário. Ora o espírito tem de preparar-se para esta irrupção ou corre o risco de não haver transcendência e se banalizar o momento. E não há melhor preparação que esse acto de respeito com raiz dentro da orquestra e transmissível ao público. A Casa da Música ignora o princípio do élan. Ponto.
Saímos um pouco defraudadas. Para colmatar lacunas, a mana ofereceu-me um gelado e aproveitei para fazer olhinhos a uns éclairs com ar boníssimo, colando a promessa de não me escaparem no dia seguinte.

Voltámos à “nossa casinha” género dominó, decoração muito suprassumo e a que não ligámos meia. E lancei-me a mastigar encores antes de. Lá fora, no longe adivinhado, o mar chamava-nos do meio da escuridão. Mas, se não estivéssemos no décimo segundo andar, divisávamos apenas os prédios na nossa frente. Oh, prosaica e incansável  realidade!

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