O
homem põe e Deus dispõe. Ainda que não seja bem assim, as expectativas que
goram deixam um amargo que não desfaz com caramelos. Na Casa da Música não
aconteceu o que esperávamos: o concerto para violino de um qualquer autor
polaco feriu-nos (me) os tímpanos. A spalla
da orquestra a despedir-se dela com a interpretação como solista num
concerto difícil e exigente, originário do seu país. A opção pareceu-me bem.
Mas os violinos têm aquela particularidade de me bulir com os nervos se encarniçam. E o concerto foi feroz: em crescendo, um frenesim enlouquecido do
arco sobre as cordas que fez com que ela e o spalla substituto – ocupava o seu lugar na orquestra – a dada altura,
tivessem de aparar as cerdas desprendidas do arco (não consegui evitar a
comparação com a situação em que a espada se parte na luta). Sou uma
desentendida musical, mas parece-me que a dificuldade da peça – admito que
também o seu ser, já reparei que os povos de leste criam música que raia as
vibrantes noites de trovoada e primam por um aparato sonoro sem insinuações, estridência quase
dolorosa – terá levado a mestria a suplantar a sensibilidade musical. Ora, já
me foi dado escutar solos de violino divinais. Bom. A senhora, muito ovacionada, saiu banhada em flores. O reconhecimento foi bonito, a dignificar público, artista e
orquestra. União de plausível última vez. A coincidência agradou-me. Manda a verdade que se diga, nos concertos a que antes assisti,
jamais alguém se acercara dos executantes a oferecer flores. Mas é merecido
gesto a quem nos levou tão longe e sem peso, usando essa mistura de tempo,
esforço e génio que é a arte.
E
afinal nem gostei assim tanto da sala, nem entendi o propósito de uma primeira
fila quase siamesa com o palco. Nós, na terceira correnteza de lugares, ficámos
um bocadinho incomodadas de pescoço (é claro que a confiança da mana em mim
levou a que nos sentássemos em lugares errados, mas pronto, ninguém reclamou).
Dizia uma portuense expedita e da casa, “as melhores filas são a G e H”.
Guardámos o conselho na gaveta do “a haver” e sorrimos à sua simpatia; foi ela
que nos informou do adeus da spalla e
nos fez breve resenha da sua vida pessoal e profissional (as cidades são
aldeias maiores).
A
primeira surpresa adveio do comportamento informal dos músicos. Chegámos cedo e
vários se encontravam já sentados, a conversar e a rir. Habituada a um ritual
de entrada conjunta e silenciosa, um estar sentado muito direito com
conversas apenas sussurradas e essenciais, olhos de preocupação quase terna com o
instrumento que tocam, pareceu-me aquilo um despudor, transparência perniciosa.
Podem pensar, e que é que tem que entre cada um a seu gosto e de sua vez, é
mais democrático assim. Respondo, é uma questão estética. Há uma mise em scène que falha na Casa da
Música e que é necessária no apontar da raridade. Os
sentimentos que a música provoca são solenes. Como a religião, ela abre
dentro de nós, em cada vez, um tempo novo e originário. Ora o espírito tem de
preparar-se para esta irrupção ou corre o risco de não haver transcendência e
se banalizar o momento. E não há melhor preparação que esse acto de
respeito com raiz dentro da orquestra e transmissível ao público. A Casa da Música ignora o princípio do élan. Ponto.
Saímos
um pouco defraudadas. Para colmatar lacunas, a mana ofereceu-me um gelado e
aproveitei para fazer olhinhos a uns éclairs com ar boníssimo, colando a
promessa de não me escaparem no dia seguinte.
Voltámos
à “nossa casinha” género dominó, decoração muito suprassumo e a que não
ligámos meia. E lancei-me a mastigar encores
antes de. Lá fora, no longe adivinhado, o mar chamava-nos do meio da escuridão. Mas, se
não estivéssemos no décimo segundo andar, divisávamos apenas os prédios na
nossa frente. Oh, prosaica e incansável realidade!
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