As
alcatifas dos hotéis guardam histórias de passos no meio das fibras. Rente
ao chão, acamadas com o pó residual, as hesitações de pés e a secura displicente
de couros de nariz empinado emparelham com o aflorar de dedos mínimos a
ziguezaguear fora das sandálias em infância retardada, os pés a estacar numa
admiração, fora da sua disposição natural, ora esta, e eu a pensar que passava
dos trinta... Prejuízo de asmáticos, as
alcatifas recobrem chão tão probabilístico como o das pontes, que a indústria
hoteleira gosta que nos deitemos armados no ar. Sob elas, bem agasalhadas no sintético
do seu calor, cordas e cordas de pó em vinco escuro, bolas de cotão com séculos
de existência. Contudo, é inegável que confortam pés e tornam leves os passos
de corredor: retiram-lhes o tom, expurgam-nos de si, abafam-nos de todo; nelas,
até o salto agulha soa a sapatilha de bailarina e qualquer ouvido apurado lhe escuta os lamentos sob a impiedade perfurante, socorro, estão-me
pisando os cabelos, ai, ai, ai – e no gesto peculiar de compor-se, fibras
dolorosas endireitando a poder de esforço -, logo eu que sou tão arrepeladiça.
Porém,
a maioria de nós não se gasta nestes pormenores, apenas atenta em números e
cartões com números – os hotéis são um mundo numérico -, de andar, de corredor,
de porta do quarto, de telefone. E mais eteceteras. Quanto aos prolíficos cartões,
desconfio que não sabemos viver sem eles.
Entramos
no quarto como se uma gruta de Ali-Babá: às espreitadelas, a palpar camas,
abrir torneiras, espiolhar o roupeiro, catrapiscar a paisagem. Não há como
estes gestos simples para nos sentirmos em casa: alongamo-nos no leito (palavra
mais bonita, leito) como se ele nos
soubesse curvas e contracurvas – mas não sabe e esta ignorância apadrinha muita
reviravolta nocturna - e entramos na casa
de banho com a sensação única de que nos está a uso. Serve-nos (pode não parecer,
mas o poder sobre as casas de banho, importa). E, hélas, não temos de a limpar.
Esta certeza retumba-nos na mente e torna qualquer banho outra coisa: uma
simples chuveirada devém hidromassagem. Banhamo-nos e, novinhas em folha
(dentro da idade), vamos espiolhar os arredores, decidir onde jantar, antecipar
receios na Casa da Música que sou bem aselha e já dei por mim numa sala de
cinema a ouvir o filme sem lobrigar o écran (ainda estou para saber como é que
consegui uma proeza destas). Ora, neste concerto não me convém ser pata-choca.
Damos de caras com uma feira alapada na Rotunda do Bom Fim. Verdade que tínhamos
viajado com uma equilibrista de circo, mas, ó bom Deus, uma feira com cheiros,
pó e tudo?! Não precisávamos tanto.
Por
causa das coisas, chegadas ao destino, como se fosse um labirinto grego
ou mesmo egípcio, aprendemos o caminho da sala e deitámo-nos a mirar umas
canecas com reprodução de azulejo português de não sei que século que tomei por
pinturas de Mondrian ou Paul Klee, no que fui sensatamente
corrigida pela dama de serviço. Pensando que o nosso chá príncipe gostaria de
reinar lá dentro, mas desaguisadas com o
espavento no preço da loiça, desistimos. Dissemos não. Há que saber resistir.
Depois, entrámos no Bom Sucesso com o nosso fino ar de habituées e comemos uma salganhada que metia rissóis e substituí por
chamuças que também não correspondiam. E tudo isto servido por uns portuenses imberbes e
simpáticos. E para cumprir a tradição de ser mercado, comprei encores que, isso sim, eram mel. Ah! E
namorei longamente os doces que encontrei de passagem.
De novo na “nossa casa”,
pusemo-nos vaporosas e aproveitámos para crescer um tudo nada. E em seguida,
muito compostinhas e altas, dispusemo-nos a estrear a Casa da Música na sua utilidade primeira.
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