quinta-feira, 23 de julho de 2015

Me, Mim, Migo, na Livraria Lello

Bom. Já tinha passado à porta da Lello, feita mirone. Espreitei-a por duas ou três vezes e, achando-a demais para mim, voltei para trás. Sou descorajosa. Assaltam-me pensamentos levianos que são desculpas para não ir em frente como, não devo pisar, é só para gente muito in, vão olhar-me de lado, decerto percebem o meu congénito ar parolo. E etc. Mas desta vez fiz questão: entrei mesmo (talvez apenas por estar acompanhada e a companhia não ser tão palerma quanto eu) e percorri escadas e corredores. E senti-lhe a asfixia. Acinzentava cansada de gente, envelhecida de pele. Mal lhe pus o pé – era sábado –, um mar de gente. E ela infeliz. Podem atirar, e tu, não eras mais uma pessoa a visitá-la. Pois. Mas quem faz questão de passar só para dizer que foi, não faz falta e causa dano. Pisa a moer, a ralar o esqueleto já tão frágil da gentil Lello. As gentes (visitantes de faz de conta) são na Lello o que o excesso de uso de make up é no rosto de qualquer mulher; força de desgaste, comem-lhe as cores naturais. Passei a porta e fui invadida por aquela sensação de mau estar que me causam os magotes de gente. Logo depois, aragem de desgraça, bateu-me o desgosto da livraria ela mesma. Que eclipsou o apetite de subir-lhe a escada. 
Imediatamente à minha direita, o livreiro – penso que fosse um livreiro -  fingia que se entretinha a endireitar uns cartões e uns livros; garanto, estava tão contundido quanto eu. Pespeguei-lhe a minha simpatia. Não deu por nada, estava disfarçando de ocupado. Entretanto, observei que ninguém comprava e todos – ou quase – tiravam selfies e não selfies, puxavam da máquina a destom. Descer ou subir a escada era uma proeza de dez minutos em espera, havia sempre um clic de ficção e uma pose. Aqui. E também acoli. Pergunto-me com probidade: de que vale pôr as fotos onde todos as podem ver, se não consegui entrar no lugar fotografado, não lhe espreitei a alma, nem lhe dei tempo à sedução. Em que tristeza pegada vivemos! E o pior é que não caímos involuntários no buraco. Fizemo-lo e atirámo-nos lá para dentro. O resto não vemos, que é fundo e não nos deixa espreitar. E depois - ai Platão como tu sabias! -, pensamos que isto é que é viver. Ora bem.
Em tardes deste quilate, os livros recatam como fetos e falta-nos o recado da sua voz de silêncio. Encolhem as lombadas, cerram os dentes, que é como quem diz as folhas, e aguentam. Imóveis. Títulos desbotando negruras a cada flash. E as pessoas passam-lhes sem um viés, um soletrar de atenção. Ignorantes da maravilha que empalidecem e fazem adoecer.
Senti-me mal, pronto. Vieram-me à boca umas ânsias de sair. Mas esperei por esta e aquela pessoa. E mais a outra virada a este ângulo, a mostrar aquele candeeiro, o rendado de um tecto. E a continuidade de com e sem flash. Das poses. Dos passos. Dos olhos que não enxergam. Do excessivo e exterior. Que estraga. Corrói. Corrompe. Saí de alma a arrastar, pesada de devassa.
Acudam à Lello que ali há violência sobre um ser inocente e já enfermo. E podem crer, sei do que falo: a livraria está stressada a mais não poder. Um dia dá-lhe um abalo dos grandes, desata aos gritos e com a força dos soluços os livros caem todos das prateleiras. A pobre está a dar de si, bem lhe notei o buraco aberto no vitral do tecto e a palidez geral.
Portanto, ou lhe retiram as sanguessugas e a alimentam, ou ela morre mesmo.

Não haverá no Porto uma alma – ou uma data delas -  que acuda a esta beleza adoecida?!

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