terça-feira, 8 de agosto de 2017

Auschwitz

Auschwitz não é um lugar. Podem dizer que sim, que são quilómetros de presídio em cilício e arame farpado; que bem se vê lá dentro a tristeza dolorida de pavilhões em asfixia; que tem um portão com o letreiro mais ironicamente contundente, “O trabalho dá saúde”. E não mudo de opinião, não é um lugar. Talvez a forma mais exacta seja referir que o conteúdo se sobrepõe. Em omnipotência. Também devido a sub reptícios de cinema. Ou apenas na emergência sombria do meu imaginário. Juro, não percorri um campo de concentração vazio, nem respirei livremente o ar da rua, não olhei com olhos meus o verde das ervas que crescem indiferentes ou as árvores lá em baixo, livres, livres, sem saírem do lugar. Eles impõem-se, emergem de ruas e barracos, enchem tudo. E ali se quedam sem expressão, presenças espoliadas e sub humanas, aterradoras na sua fixidez de animal maltratado e sem futuro.
Tenho quatro anos, vou não sei para onde, a minha mão na tua.  Seguimos como num sonho mau, em fila de gente a que não vejo fim. Dizem os soldados que há um lugar onde os judeus podem viver durante a guerra, é para lá que vamos; não entendo o caminho de tanta gente,  já temos a nossa casa. Antes de sair o portãozinho de grades que fecha no trinco e emperra, vi o cão com olhos de susto e rabo entre as pernas a espreitar-me por entre os arbustos do quintal; a esconder-se aos primeiros tiros. No reboliço impaciente das tropas, eu num susto sem lágrimas, escudado nas tuas saias, decerto uma máquina a mexer-me os pés que não me lembro de comandar as pernas. Depois, um comboio sem fim atulhado de gente e todos de pé ou não cabemos. Custa respirar em tanto aperto de pernas e braços.
 Dias e noites aqui. Tenho fome, tenho sede, queria o meu lugar de chichi e cocó, o canto do vagão fede. Pessoas que antes se queixavam e de repente muito quietas, dizes que mortas e passas-me o teu lenço perfumado que não derrota o cheiro. Quero a minha casa, o meu cão, o urso de peluche e tudo que não trouxeste. Não sei como aguentas isto sem lágrimas; de vez em quando, elevas-me e colas-me a boca à fenda do vagão, ali onde todos querem um espaço de respirar. Enquanto isso, acho que deixas o homem do lado pôr-te a mão no ombro a puxar-te para si enquanto sorvo o ar todo que posso, a tua cara de repente outra. Chegamos nocturnos a lugar desconhecido e o ar frio refresca-nos depois de tanto suor e calor de gente. Deixámos um monte na estação: malas, haveres, tudo. Que estranho não precisarmos do que meteste às pressas dentro da mala. É a vontade deles; e o medo de vozes que são  facas e da desfaçatez das armas; dos cães que, a um pequeno desvio, rosnam e ameaçam a exibir uma serra de dentes. Aterrorizo quanto sei, a minha mão a tremer na tua. Levam-nos para uma sala despida e ali dormimos uns sobre os outros no aperto do frio. No canto que o homem disputou para nós, adormeço de rosto enfiado no quente do teu pescoço, meio tapado na aba do teu casaco, sentindo o teu coração bater com mais força quando ele se mexe sob o teu corpo; e nós dentro de uma onda de calor que parece subir do chão e traz um cheiro que não sei. E eu, em quase sonho, imagino o conforto caseiro. Amanhã, segredas tu por entre o sono do homem, dão-nos um lugar para viver.
E não havia lugar, Mãe. Nem o banho quente prometido à criançada nua. Na separação, houve os nossos gritos de ultraje e ferida e as mãos das mães a crescerem até aos cotovelos, esvaziadas à bruta. E eu nu de ti. Antevendo o banho quente antes da escola.  Quanta criança! Entrar por meu pé e não mais sair. E, em menos de meia hora, mercê de forte pisadela, ficou de mim um sapato de atacador solto. E tu despias-te fechada no desgosto da separação,  alapada à quimera, vai à escola, está melhor que eu. A essa hora, Mãe, enquanto tapavas pudores com mãos de nada, eu já saía volátil por cano largo de chaminé. Meia hora mais e outros como tu violaram-te corpo fora, abriram-te a boca de dentes bonitos a pesquisar o ouro que não havia; e antes de te levarem ao destino final, escalpelizaram-te a trança. Só depois subiste no ar e reunimos em cinza.

Este garoto acompanhou-me a visita. Na presença deles (houve outra gente) o pessoal, as câmaras de video, máquinas fotográficas e outros apetrechos, dissolveram. Que eles permanecem exactos: doloridos e exaustos; conservados em sofrimento e injustiça. De Auschewitz, ninguém se liberta.

Sem comentários:

Enviar um comentário