terça-feira, 1 de agosto de 2017

Partida, Largada, Fugida

Antes, eu julgava que preparar a casa para férias já eram férias. Hoje, por via do ininterrupto fio do tempo e sedimentada de horas extra-longas, reconheço, não sou a mesma. Divirjo. Emprestar à casa o espírito de sobrevivência cansa e exaure-me. Se pudesse, saltava esse patamar. Ele são flores em chamado urgente,  rega-me que tu é que sabes a quantidade exacta de água e nem calculas o que custa o atoleiro nas raízes, ir morrendo a partir do fundo da alma que não sabe nadar e se  afoga e apodrece nos dedos da terra em papa. E tu não falhas a circunstância. E depois segredam-me ternuras enquanto aplico o regador, coisas como, não te demores que precisamos de ti, se não voltas, esquecemo-nos de florescer; ou sussurram no fim de tarde, volta ou não aguentamos de saudade, morremos, definhamos aos poucos. E num aviso de cautela, vê lá se tens cuidado que somos inertes e prisioneiras, à mercê de quem vier. E depois há a casa, o lava loiças, as bancadas da cozinha, o fogão, as mesas de cada divisão em lamentos que me tolhem a cada passo, teimosia de esperança que me atrasa o espírito viajante. E finalmente saio e fecho a vida caseira na redoma. Vejo-a de longe, sem som que lhe valha, como se não fora minha, mas sendo. O ar do aeroporto saturado sabe a oxigénio e empurra-nos para o pássaro de aço e sua arrebatada força de propulsão. Subir. Sentir o continuum de aceleração e as rodas da frente a soltarem-se do asfalto, e logo após, num ápice, as de trás. Estamos no ar. A paisagem agiganta na proporção em que o conteúdo diminui. Tudo a encolher, casas que ainda são casas, arcos breves em ponte, estradas em cobra , rios que são fitas azuis como nos mapas da nossa infância, Tejo, Douro e Guadiana. E eu no exame da quarta classe, qual é o maior rio de Portugal?, a falta de investimento na geografia somada à desorientação congénita, Guadiana. O examinador a faiscar, todo olhos a saltarem detrás dos óculos, um repente de rosto  afivelado em zanga e escândalo. E eu a diminuir como a paisagem, bicho de conta a sumir de susto e falta de sorte, não era este.
Sobrevoamos as nuvens, há sol, as hospedeiras afadigam-se sobre um chão falso a preparar uma refeição de faz de conta e esvaem-me a infância de bata branca. Embarcamos em uníssono no trivial que não é de uso: mastigar em voo, a mais de 2000 metros de altitude. Convictos de que não se cai a mexer o café ou dar dentadas num muffin. Mas cai. Confiados em pilotos de porte garboso. Esclarecidos de que o rei pilotou estes aviões. E um rei, não é por nada, mas infunde respeito. Diz uma colega convicta, repare na tinta que gastaram a pintar os aviões, aquilo é a sério. Olho e confirmo,  navegamos num golfinho azul e coroado, gastaram muita tinta. E torna ela, sapiente, isto não é qualquer tinta, que se esbarrondava toda na alturas se fosse barata; não, não, é tinta da boa. E muita, esta companhia é como deve ser. Válidos argumentos. Convenceu-me.

Em Cracóvia noite fechada, aeroporto sonolento e a adormecer por sectores. Um bólide xpto em espera. No interior, música polaca de mistura a Roy Orbinson, Gipsy Kings e Gene Kelly (e nós) a cantar singing in the rain em lugar de bom tempo. A caminho de uma casa que nos espera e já é nossa. Do século XIX. Fresca. Airosa. Portas em silêncio codificado. Entramos no cofre. E assim permanecemos, guardadinhos para amanhã.

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