quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Limites

Ganhei  hábito de janela e olhares matinais quando me mudei para o apartamento lisboeta. Contudo, continuo sintonizado com o ritmo aldeão e emito sinais de vida aos primeiros alvores. Apesar dos meus cuidados, minha mulher rabiava que não dormia uma manhã em descanso. Tudo lhe perturbava o ouvido de tísica, a cozinha de pequeno almoço, a água corrente na casa de banho,  tosse,  passos de chinelo, o alvoroço do cão na porta de entrada a farejar-me os movimentos. Nesse tempo, a rua não me chamava.  Bastavam-me os ingredientes in(ternos). Havia um jeito de lar nos cheiros de cada canto e em cada coisa no lugar; uma certeza de gavetas; certo aconchego de ninho previdente. Entreabria a porta do escritório e, na mesinha, longe de indiscrição visitante, os filhos sorriam-nos desde a juventude; logo ao lado, todo arte fotográfica, o primeiro neto.  Um mundo que foi eterno até à estranheza de  não me apareceres estremunhada, mãos a algemar cabelos num elástico, voz pastosa, bom dia, amor. Abri só um pouco a persiana do quarto. Dormias. Contornei a cama, apanhei-te as mechas sobre a cara e acamei-as atrás do recorte da tua orelha de porcelana fina; e tu em modo de olhos fechados. Sussurrei no teu ouvido, preguiçosa. Mas não consegui acordar-te. Meu amor. Meu tão longo amor de curta vida. Diz-me quando em exacta colher me deixaste, em que minuto partiste, qual o momento em que a tua alma voou do meu braço abandonado no teu corpo.

E logo a casa se transformou. Desencantou dos cheiros vitais, ampliou de recantos sombrios alongando pelo espaço onde os meus passos ecoavam. Quando a almofada perdeu a forma da tua cabeça e o perfume deixou de cheirar a ti, vendi a casa e dei o cão ao vizinho pequeno, aquele que o beijava entre as orelhas e fazia dele cavalo. Foi assim que criei tempo para o vento na copa das árvores, os lulus passeados na manhãzinha por donas descompostas, rolos na cabeça e roupão, uma sofreguidão de vício a subir-lhes pelos dedos de nicotina. Envelheci, Amor. Árvore de raiz podre, não me aguentei ao teu balanço.  Talvez tenha acontecido na vez em que parei a meio da escadaria, uma moínha leve a rondar a perna esquerda. Ou, quem sabe, foi anterior e começou no teu desafio, vamos ver quem chega primeiro. E ganhaste-me logo no segundo lance de escada. Não sei precisar. Durmo do teu lado da cama que nunca te teve (durmo é eufemismo para as horas de posição horizontal). Tu sabes. Deito-me e a dor mostra-se. Persiste. Não é severa, antes um sinal de erro, máquina com anomalia.  Talvez na cabeça do fémur, que qualquer escadaria me maltrata e o terceiro andar sem elevador, um martírio. Não demove com repouso e recusa abrandamentos nocturnos.  Tiveste a sabedoria de abandonar o corpo na idade certa, que logo, logo, ele se tornaria incerto. Não sabes o desfalecer de tudo, a desimportância de rugas, meros vincos que nos desfiguram; os brancos que encanecem e avelhantam; a pele do corpo que sobra e pendura a cada dia. Não, essa metamorfose é resíduo. A mágoa é  não ser capaz acompanhar quem nos cerca. Querer ir e ter de ficar;  ter alma de experimentador e ficar a olhando por janelas reais e virtuais. Ser velho exige, em permanência, um reajuste no agir. Sempre a minguar.

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