terça-feira, 15 de agosto de 2017

Senhor António

Nos primeiros tempos não dei por ele. Transpunha a cancela a adiantar hipóteses, fixo num futuro de papéis, rememorando urgências telefónicas e post-it, minutos em desconto para um café. Confesso, não o via. Passaram meses até lhe notar a atenção. Rasa. Fluida. Creio que foram os olhos funcionais.  Ou tínhamos, em verdade,  de nos cruzar.
Naquele dia,  pretendia chegar com algum avanço a um encontro importante. Queria rever os pontos fundamentais da negociação e relembrar estratégias e pormenores. As informações sobre a gestão e personalidade de quem me aguardava corriam-me a bold na mente e sabia que o acordo entre ambas as partes dependia da transição entre a  exigência flexível e amigável e a imposição em trompe d’oeuil que cerceia amizades. Tinha sido escolhido por isso mesmo. Sem falsa modéstia, dominava essa arte de dar e retirar sem mão, parecendo que dava mais do que subtraia quando sucedia o inverso.  Claro que vendia o produto apoiado em cálculos e dados reaise transparentes,  mas escamoteava especificidades que os tornavam pesados e menos lucrativos. Esse era o ingrediente secretíssimo. Na vida empresarial, a transparência conquista-se, iça-se do fundo de água turva onde nasce o lucro. Enredado neste conciliábulo, só reparei na avaria da cancela quando, imediatamente antes de embater, o homem avançou, abriu manualmente, e regressou à cabine envidraçada. Irritei-me. Baixei o vidro na intenção de um ralhete. E dei com os olhos dele sem expressão, meros botões atentos e já acesos para o veículo que transitava atrás. Levantou-se. Imaginei que iria proceder a idêntico conjunto de movimentos. E desisti. Afinal, eu vinha distraído e ele executara a função em tempo útil, de modo a evitar colisão. Acelerei até ao meu lugar no estacionamento e quando entrei no elevador, já o esquecera.
A vida tem caminhos por onde seguimos atarantados e em corrida insana. Na mira dos pontos de chegada, não os reparamos, estão sem estar. Contudo, nada é tão aberto e disponível. Teremos de palmilhá-los. Ou não. Pode a morte apanhar-nos a meio, ou a um quarto. Notá-los é a única forma de os viver e sermos gratos. Os caminhos que a vida – quiçá um deus – nos deu. Chão dos nossos passos. Mas isto era assunto que, então, não me ocorria. Caminhava como os jericos, a olhar em frente. Os objectivos como degraus, nem sequer metas ou zonas de verde respiração. O caminho existia-me em forma de subjecividade radical: dizia respeito à velocidade e tipo de passada, ao número de degraus transpostos. Competia comigo mesmo.
Nesse fim de tarde, saí a pensar numa bebida. Fora bem sucedido. No dia seguinte, iniciava outro desafio.  Apetecia-me fechar o dia. Adormecer no sucesso. Pensei vagamente que um brinde não ficaria mal, mas não havia com quem, o mundo de colegas laborais era pouco atreito a celebrar vitórias de outrém e a namorada estava longe e em trabalho. Tomaram-me de assalto as suas pernas a sairem da t-shirt, os pés descalços, mamilos a enrugar o algodão, e alaguei em ternura.  Concentrei-me na escolha do lugar, o sorriso meio irónico e cabelos de rapazinho maroto a persistirem.  Afastei-lhe a imagem e, enquanto atravessava a rua, fitei a mancha escura de árvores copadas. Gostava daquele lugar fora do bulício. Entrei.  Uma luz discreta iluminava o interior. Sentei-me nos fundos, alarguei o nó da gravata e pedi. A meio da garrafa requisitei outro cálice e chamei o empregado, importa-se de brindar comigo? Ele trouxe um copo, largou o tabuleiro sobre a mesa e encheu os dois. Quando o ergueu li-lhe o nome na chapinha de metal: António. Olhei-o vagamente, À nossa. Bebeu de um trago e, sem palavras, voltou à sua lida. Não agradeceu. Cumprido o desejo do cliente, retomou a actividade. Alguma coisa nele me parecera familiar, mas julguei tolice. A essa altura já o mundo me parecia risonho e eu era leve. E desliguei.
Passados dias, o funcionário da entrada pede para falar comigo. Tratamos do assunto, olho a chapinha do nome e, António. Era ele. Os mesmos olhos sem expressão, corpo de nem orgulho nem submissão, solicitude comprada. Quando à noitinha fui confirmar, encontrei-o no pub. Um desempenho perfeito e maquinal.
Intriguei com o homem. A empresa não pagava mal, o que o levaria a deter dois empregos?! Investiguei com o dono do pub, mas conheciam-no apenas dali. Usava pontualidade inglesa, calado e sem amigos. Satisfazia em absoluto no trabalho. Quando o investiguei na empresa verifiquei que estava indicado como trabalhador de continuidade, não faltava e não existia registo de queixas.

Entretanto, comecei a passar a cancela com um aceno de cabeça que só os olhos dele pareciam notar. Se voltava ao bar, a resposta ao meu cumprimento não diferia de nenhuma outra. Continuávamos estranhos. Certa noite, não aguentei a curiosidade e esperei-o no fim de turno. Apareceu com um cãozito pela trela. Silenciosos ambos. A sentir-me um estorvo inquiri, na sua idade, dois empregos são castigo, se precisar de dinheiro...Olhou-me sério. Andou uns passos comigo e o cão ao lado. Sentia-me um inútil, a chave do carro a bater-me nos dedos, sem saber que fazer. Parou e sem se voltar murmurou a olhar o alcatrão, há tristezas tão grandes que perdemos o tino, deixamos de mandar em nós. Mas ainda reagimos a ordens. É por isso que tenho dois empregos. Olhe, sou como este cão. Só que não tenho dono. E afastou-se.

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