terça-feira, 8 de agosto de 2017

Os Primos

Viajo às vezes com meus primos. Minha mãe parece confiante na sua mestria de guardadores de jovens casadoiras e mobiliza-se a encontrar-me indumentária que ajuste ao suposto acerto matrimonial. Meus primos,  solitário casal de meia idade, nem velhos nem novos, vivem regaladamente para si mesmos. Ou é assim que os julga minha mãe no seu inglório afã de queixas acerca da minha pessoa e da falta de jeito para encontrar a metadinha. Habituei-me pois a esse acerto de férias que a deixa esperançosa e livre para amigas e passeios. E parte contente depois da visita ao seu coronel que dorme tapadinho com a colcha de renda antiga na prateleira do jazigo onde, diz ela, eu a hei-de levar um dia sem pena ou paixão. O que não é verdade. Minha mãe é senhora tão avessa a costumes maternais que a sua suculenta alforria por certo me deixará saudade. Mercê desta espontaneidade que não herdei, conquistou meu sisudo pai, sempre temeroso de repentes tão prazeirosos como inoportunos, e que tanto o derretiam como irritavam. Contava que o seu riso alto na parada, de costas insolentes para os graduados, o prendera sem remédio. Quando eu nasci após nove meses em que maldisse a maternidade e nos arriscou quanto pôde, sentiu-se livre de encargos e tratou-me como brinquedo favorito que passava à empregada mal me desconfiava pessoa.
Ora meus primos, aqueles a quem minha mãe me entrega nas férias por julgá-los empenhados no meu futuro, ou seja, num casamento decente, levam-me consigo na mira da sua prodigalidade. Mais novos que ela, limitam-se a carregar-me sem outra obrigação. Eu agradeço a liberdade e pouco saio sem eles. Assim conheci lugares e hotéis, sem experiência das amizades românticas para que ia talhada. Em compensação, sobra-me tempo e disposição para estudar os dois.
Há nos casais sem filhos uma união que minha mãe não supõe e eu experimento sem evasivas. Ela nomeia-os pais temporários. E eles não saem do casulo. O casulo de meus primos é circular, sem ângulos e acutângulos. Tudo gira em volta de prima Fininha, Josefina de seu nome. Ela marca a hora de sair, de ouvir música, de falar. Antes do seu pestanejar matinal, a casa é um sepulcro. Primo Gustavo, sempre tão quedo, todo se empertiga ao menor som, cuidado que Fininha dorme. E fica na sala contígua ao quarto, cão de guarda ao recato de Fininha.  Ora minha prima acorda tarde e o seu humor trabalha a horas de sono. Se incontornáveis acasos nos levam a madrugar, Fininha exaspera, irrita, grita, amua. E bom é quando a nossa menina decide num repente, vou dormir. Enquanto Fininha dorme, pára tudo. Que ela sim, é a menina. Uma menina pequena. Mimada. Mandona. Minha mãe supondo que passeio nas alamedas com meus vestidos de arrasar e eu a usar silêncios matinais  para ler, pensar, escrever. E faço orelha mouca aos vestidos que confrangem, não saímos do cabide, para que viemos.
Se acaso Gustavo se levanta primeiro, surge na sala em bicos de pés e comunicamos um com o outro em secretismo tão inaudível que mais parecemos conspiradores. Se pudesse, faria campânula vazia do mundo exterior só para não perturbar a amada. Fininha não cozinha, só come. E come voraz, numa pressa que minha mãe estranha, parece que tem medo que a comida fuja, mastiga como um furão. Desconfio de minha mãe que nunca viu um furão nem sabe dos seus hábitos alimentares. No entanto, concordo, a prima é senhora de invulgar mastigação e parece sofrer  insaciável fome de séculos.
Nas férias (e desconfio que em outros tempos), primo Gustavo orbita-lhe os gostos mínimos e também os máximos. Ela que, se eu ousar uma compra criteriosa, me afirma criança aborrecida (trata-me assim) que a faz perder tempo,  entra e atarda-se em experimentação do que bem entende. Cá fora, primo Gustavo espera paciente e sem recriminar, contente da compra mesmo antes de a ter visto.
Na hora do jantar, Fininha recreia a cortar no facebook. Nos utilizadores. Nas fotos que por lá deixam. Que há muito quem viva pendente desse mundo de faz de conta. Mas antes de sair, e também antes de deitar, ensaia poses e fotografa-se; se desanima por um assim ou assado, pede a Gustavo que a fotografe, exige um ângulo depois do outro, muda o penteado, vira-se do outro lado, sorri só com os olhos, põe mãos em evidência, esconde cabelos. E etecetera. Se fica um momento em avaliação e a foto agrada, corre ao face a divulgá-la.
E ora esta que não chego a vestir os vestidos de anzol. E nem tenho conta no facebook. Decerto me desencontro  do Gustavo que me cabe e nem sei bem para que o quereria.

Mamã, tenho certeza, certezinha absoluta, fico para tia. 

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