terça-feira, 15 de agosto de 2017

Paralelo

Encontrei-a entre aviões, tão perdida quanto eu num grande aeroporto. Duas mulheres em trânsito, idades e destinos diferentes. Era Inverno e um manso nevão aconchegava-se pelos hangares e pousava no dorso metálico dos aviões. Nessa noite, o aeroporto regurgitava de gente. Enxameava.  Gente retida a meio do percurso, crianças de colo e birra, um embaraço de malas junto às pernas, ou em ruidoso e arrastado cirandar.
Viajava sozinha e tentei afastar-me do ruído na mira de um canto sossegado onde pudesse dormir um pouco. Reparei nela quando juntava as malas. Era jovem e estava sentada no corredor em frente do meu, semblante contrariado. Imaginei que o jeito contrariado se devia ao incumprimento de horas e afazeres no ponto de chegada. As previsões eram catastróficas em relação a compromissos: os voos nocturnos tinham sido cancelados e na manhã seguinte, já sem queda de neve, a seriação das rotas fazia-se pelo atraso que detinham. Com sorte, o meu voo saía pela tardinha. Os hoteis do aeroporto estavam superlotados, não havia onde albergar toda a gente.
É sabido que aeroportos e aviões aproximam desconhecidos. Habita-os uma tal precariedade que normais pruridos se dissolvem. Ao fim de uns minutos de mutismo, eu e ela conversávamos como colegas de trabalho. No vaivem de descobertas e alguma afinidade, e porque nos desagradava a noite branca de corpo sentado, resolvemos abandonar o aeroporto e procurar quarto na cidade. Guardámos a bagagem maior e um taxi levou-nos ao hotel. Outros viajantes tinham tido o mesmo pensamento e o único quarto disponível  era um quadrado mediano atravessado por uma cama larga. Olhámo-nos rindo e dei-lhe a escolher entre o lado esquerdo e o direito. Dormir acompanhada era-me difícil e estranho, mas não havia escolha e o cansaço da viagem pesava-me no corpo. Enquanto a minha companheira retirava a maquilhagem no espelho do quarto tomei um duche rápido e enfiei-me na cama. Depois, fiquei a ouvir o som abafado do chuveiro por entre apreensões, e se ressono, e se não consigo adormecer e dou muitas voltas na cama, e se. Mas, ao invés do que pensava,  caí num sono profundo.
Sonhei com mãos suaves a soletrarem-me o corpo; sílabas paradas e repetidas até à exactidão do som, espaços que o desejo preenchia. Temia o desfazer do sonho. Queria ficar, permanecer nesse mundo de calor e companhia, prolongar o bem quimérico de me sentir amada e indefinida. E as mãos que. E infinitamente me amavam em cada arco e grinalda de dedos, o corpo a fugir-me, a fugir-me. Algum animal me enrouquecia na garganta e me fechava as palavras, as escondia e eu apenas um som de liberdade sem nexo por onde enfim respirava. E quando recuperei braços e mãos, senti-os a serem mansamente levados e deslizavam já na suavidade cálida da pele. Subi-lhe a cintura a medo e dúvida, dedos incrédulos  na elevação do peito de mamilos erectos...afastei-me de rompante, agora bem acordada. No horror de ser verdade desviei-me dela num misto de nojo e estupefacção. Com o meu corpo. Com ela. Connosco. Na mente, em néon, um e agora gigante. Tentei levantar-me e as pernas prendiam-se nos lençóis, não conseguia erguer-me.

Acordei quase a cair do banco, salva pela trincheira da bagagem. A mulher continuava na minha frente e olhava-me como quem vê bicho raro, uma expressão curiosa a vestir-lhe o semblante. Posso ter corado. Posso.  Alheia aos meus íntimos motivos, ela levantou-se e rumou ao destino. O tempo que nos aproximou também nos deu distância.

Sem comentários:

Enviar um comentário