Aos onze anos, os meus pés a espreitarem por entre os ferros da bandeira da
cama de ferro, ganhei um divã e inaugurei as minhas noites
aerodinâmicas. Não sei se já tinha visto algum, mas ardia em
curiosidade com um estrado todo em molas e um colchão completamente diferente,
as camisas de milho substituídas por bocadinhos de espuma parecidos com a
esponja do banho. Extraordinário. Dormir num colchão multicolor, com
bocadinhos de esponja do banho, era de certeza bom. Da primeira vez tive mesmo
alguma dificuldade em subir. Um colchão de esponja partida sobre um divã de
molas muito flexíveis era um desábito e um nunca acabar de balanços. Mas todas
as mulheres da aldeia fugiam dos carolos das camisas de milho, do restolhar ao
mínimo movimento, das comichões que alastravam pelo braço ao meter a mão no
colchão e mexer as palhas. Os novos colchões inflavam de qualidades, surgiam medicinais, tão
fofinhos, tão quentinhos, a gente deita-se e a esponja ajeita-se ao corpo,
macia que só visto. E não faltavam citações: os pais velhotes dormiam muito
melhor, sentiam menos as dores, e etc, etc.
Longe de mim deitar culpas para o colchão de esponja que me acompanhou no
quarto do fundo, ao longo de toda a adolescência. Mas a verdade é que nunca me
habituei convenientemente ao baloiço e logo que uma das minhas irmãs cresceu, passei
o divã. Também é certo que por mais que sonhasse que caía de muito alto, não
voltei ao tapete que não havia, a cova em que dormia guardava-me de tais
arroubos. Se calhava de sonhar com o Silveira maneta a perseguir-me escarninho,
a esponja também me defendia; na câmara lenta de apanhar-me, os dedos
dele chegavam-me sempre primeiro às costas e acordava em aflição, mas logo
sentia os flocos da esponja junto à coluna, a proteger-me onde a mão dele
preferia. E não foram poucas as noites em que ajeitei a esponja para impedir
aquele braço diabólico. No entanto, também foi útil de motu próprio:
o estrado de molas que vergava sem destino escondia os livros que eu entendesse
e cabia sempre mais um; e depois podia acender uma pilha e ler sob os lençóis.
Esclareço, não eram livros proibidos, eram apenas livros. É claro que a minha
mãe os descobria porque era ela quem me fazia a cama e esquecia-me de os
retirar. Mas nunca uma palavra, um olhar ou ralhete sobre.
Quando me emprestaram os primeiros livros proibidos, fui a correr lê-los.
Decepção. “O crime do Padre Amaro” e “O Primo Basílio” pareceram-me romances
normalíssimos e muito bem escritos. O meu pai apregoava, com exemplificação
prática e geográfica, que os padres tinham as amantes que queriam e estavam cheios
de filhos por todo o lado; ora, o Padre Amaro só tinha uma, Amélia, o que me
parecia até um acto de amor maior; Por outro lado, Luísa de O Primo Basílio era
a minha heroína, loira, branquinha, com cabelo fino e bonito; de certeza, bem
penteado, que Eça de Queirós gastava folhas a falar das qualidades de um
delicado fio esquecido na almofada e do que por ele se podia adivinhar da dama. E depois, sentia peninha dela, tinha ganas de a proteger, escravizada pela
malvadíssima serva. Tudo isto só por gostar de dormir com o primo, sendo
casada; como se o marido lá na caça ou no lugar para onde foi não tivesse os mesmos intentos. A minha aldeia tinha vários casos destes, resolvidos em bem (é verdade
que ninguém tinha criadas, saiotes engomados e outros avios) e a morte da minha
heroína foi-me surpresa triste. Não perdoei ao Eça. Anos de rancor. A prender o
burro pela Luisinha. Só mais tarde, já muito adulta no BI, entendi que os dois
livros estavam no índex do colégio, mas eram, afinal, literatura normal. Fiquei
mais descansada.
(continua)
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