segunda-feira, 8 de setembro de 2014

História com Camas

Aos dezassete anos dormi pela primeira vez fora de casa. Em permanência. Quatro aspirantes a professoras dentro de uma instituição religiosa que acolhia crianças desamparadas. Aparentemente, não correspondíamos à condição – todas tínhamos família – pelo que dormíamos no fundo da camarata das médias, uma cortina a separar-nos. Tenho dessas camas uma matinal memória de luz, palmas e bons colchões. Sobrevivente de um colchão de esponja migada, os meus dedos correram com inusitado prazer um colchão a sério, que o corpo agradeceu deliciado. Depois de fins-de-semana complicados e insones, suponho que adormecia de imediato, mal o corpo derrubava sobre ele, num fundo de respirações de justo sono - as garotas adormeciam muito antes de nos deitarmos - que me sossegavam. Todas as manhãs um súbito de luz eléctrica e uma revoada de palmas nos feria sono e ouvidos. E, enquanto as médias ajoelhavam para rezar, nós acordávamos. Não tinha acesso à camarata – só podíamos entrar depois das vinte e uma horas –, a carga de preocupação era grande e, para lá da cortina, havia mais de vinte pessoas adormecidas. Por tais razões a cama servia  o propósito, propiciava-me o descanso. Como se a irmã das médias, que dormia com elas na camarata, me guardasse também o sono e isso o trouxesse calmamente, apagando tudo. E trazia. Convenço-me hoje que devo a esse tempo uns meses de resistência.  
Porém, aos dezoito, alguma coisa aconteceu na instituição. Mudou a directora e a equipa de professoras aspirantes dissolveu. Sozinha, fui integrada na camarata das meninas crescidas. Aprendi a rezar sentada na cama, a vestir-me e despir-me sem mostrar o corpo. E outras normas.
Nesse ano fiz serões maiores, preocupei-me e chorei mais, a doença e a tristeza foram fazendo ninho sem ninguém dar conta, eu a estranhar coisas parvas que nunca tinha sentido e não fazia ideia de onde vinham, os médicos a que ia, é gripe; Eu, mas não estou constipada.... Passavam-me uma receita para a mão, sorriam-me e despediam-me sem mais quê. Atribuíam a magreza ao fim do curso e natural excesso de trabalho. E a olhar-me a figura que nesse tempo até era airosa, receitei umas vitaminas.
Entretanto, a camarata perdera o efeito sedativo do ano anterior. Ouvia o respirar das outras; da minha irmã tão pequenina, a meu lado, o rostozinho a emergir da dobra do lençol que tanta vez lhe ajeitei no sono solto (a irmã responsável apiedara-se dela e juntou-a a mim na camarata, mesmo sem  idade para pertencer às crescidas); as idas e vindas da irmã das crescidas que, tal como eu, não dormia e tanta vez nos encontrámos as duas no deserto do corredor de dominó em ângulos rectos sobre o claustro, a sentinela difusa da luz de presença da camarata a vigiar o perfil dos armários. A irmã que, liberta do toucado, cabelo curto e castanho, tinha um ar gaiato e sonhador. Eu, enfiada num camisão informe. Sorríamos uma à outra e desejávamo-nos boa noite, a sua voz fina a acompanhar-me até à cama, na ternura que eu precisava imaginar, mas quem sabe era verdade. Porém, cada manhã apagava a noite. A irmã, toucada pelo véu quotidiano, renovava-se impermeável. Contudo, quando a febre me engolia hora a hora e eu resvalava calmamente para a morte, desimportada do mundo, a zeladora da mesa no refeitório, uma angolana da minha idade, irmã ela não come nem fala. A irmã arrastou-me escada acima, abriu a camarata, quase me deitou, a roupa a pegar-se-me ao corpo e às mãos desacertadas de fechos botões. Pôs-me um termómetro preocupado que a tornou ainda mais alta. Em seguida, chamou o médico, hábito a roçagar corredor fora, os quadrados pretos e brancos uns para os outros, em alarme de lustro, onde é que ela vai que quase voa. E nessa hora vi-a de novo sem o véu, uma rapariga aflita. Ou foi da febre. Talvez.  
Depois, por entre peripécias de pouco jeito que me atrasaram por algum tempo, fui internada no pavilhão das infecto-contagiosas. Evidente, mudei de cama.

 (continua)

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