Um pouco mais tarde, qual sombra na peugada do meu jovem tio, vivi o meu
momento ecológico e de “faça você mesmo”: camas de ervas e ramos de árvore,
postas em cabanas de cana.
O meu tio cortava as canas todas do mesmo tamanho, deitava-as umas ao lado
das outras, atava-as com arame ou corda e fazia duas paliçadas que erguia
depois em A, uma contra a outra. Mal as punha de pé e as unia em
cima, espetava no chão o afiado das canas e eu passava a brincar no
seu interior enquanto ele fazia a parte mais difícil, os dois triângulos que
iriam fechar a “nossa” cabana. Unidas as partes, num dos triângulos abria uma
porta e uma janela e eu eufórica, a entrar e a sair e a experimentar o nosso
fecho artesanal. Ou assomando à janela vezes inúmeras. Quando me armava em
carochinha,nome que me usava frequente, o tio ria, dava-me beijos nas bochechas, fazia-me uma festa na
franja e chamava-me miga. E repetíamos vezes sem conta enquanto cantávamos as
canções que me ensinava. A construção destas cabanas levava-nos (a ele)
dois dias, mas dormia em nossa casa, talvez na cozinha ou na vizinha que era
nossa prima. Nesse tempo, o meu pai trabalhava longe, saía à segunda de
madrugada e regressava sábado à noitinha. Eu ficava no céu: sem gritos e
sustos, sem dedos de tábua a arredar-me ou a puxar-me e com o meu tio preferido
por perto. Afirma-se que as crianças são felizes porque não sabem que são.
Contudo, eu tinha consciência de ser feliz.
Concluída a obra, o meu tio punha pés ao caminho e ia pernoitar a
casa. Voltava na manhã seguinte, com um saco grande cheio de livros e de
jogos que ganhava nos concursos literários e de canto do colégio salesiano. Carregava-o no carro de madeira que usava para irmos aos cascabulhos e me passear
por covas e cabeços eu a fazer, âââââ..., aos soluços por causa das saliências de
pedras e raízes sob as rodas do carro a que ele imprimia velocidade, os meus
dedos a enclavinhar nas paredes laterais, agarra-te bem, agarra-te bem,
avisos que me pareciam nascer das suas costas em esforço.
Depois de tudo arrumado no nosso esconderijo, líamos sobre um colchão de época - eucalipto,
rosmaninho, tremocilha - que tapávamos com uma saca a rescender. Ainda hoje não
entendo a razão por que não gosto de jogos, tanto jogámos o dominó de animais,
jogo da Glória e cartas do jogo do burro, sentados gravemente no meio das
cabanas, eu mais interessada nos bonecos do dominó que no jogo. Havia no ar a
tonalidade única e esverdeada das canas atravessadas de luz e até a minha mãe
gostava de ir espreitar-nos e ficar a ler um bocadinho ou a jogar dominó
connosco, as vizinhas embasbacadas, a pararem a lida, o jeito que ele tem. E voltavam aos seus afazeres.
Entretanto, esquecidos do mundo, jogávamos e líamos dias inteiros, até nos
doer a cabeça. Foi assim que li os livros do Fantasma e do Rip Kirby e abordei
os romances da minha tia mais nova. Não entendia quase nada, mas o facto de
juntar palavras e saber novos significados dava-me um fôlego imbatível, semeado
de interrupções constantes às leituras do meu companheiro. Por vezes, ele
enjoava-me e mentia-me sobre ir embora, entregando-me aos cuidados de minha
mãe; e aproveitava para ficar a ler descansadamente. Estas idas e vindas
súbitas intrigavam-me sobremaneira sem me instaurarem dúvida. Quando "chegava", logo o abraçava
contente, a submergi-lo de estranheza: como tinha conseguido em tão
pouco tempo, se tinha ido e vindo a correr, se chegado a meio voltara para
trás, por que tinha regressado, etc. No final da semana, o meu tio partia e eu
ficava meia atoleimada, entre desgosto e orgulho, a tomar conta da nossa cabana.
Mal o meu pai chegava, contava-lhe os prodígios operados; ele enraivava no meu enlevo
e espatifava tudo. Depois, queimava as canas a resmungar, se quer fazer coisas,
trabalhe; há aí muita terra para cavar.
Lá se ia o meu ambiente verde e o cheirinho de eucalipto que ainda
hoje me chama. É claro que debulhava em lágrimas com soluços de corpo inteiro.
Sem outro resultado que uns gritos bem lançados que faziam as vizinhas assomar
à rede da porta da cozinha e me descompunham o todo, em fuga para lugar seguro.
Por vezes, se o meu tio voltava, chorávamos os dois. E ele, deixa, o tio
nas próximas férias faz outra, agora vamos a um joguinho de dominó, tá bem?
(continua)
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