quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Os Maias

Voltei ao cinema! A Magia da história a fazer-nos personagem silenciosa na ilusão de que sozinhos com ela; um tempo que se rouba – ou parece – ao continuum, élan que não detecto no melhor filme de écran caseiro.
Não tinha pensado encontrar "O Ramalhete" e sua gente por mão diversa da de Eça. Veio pela mão de João Botelho. Em boa hora. Contrariamente à maioria das pessoas, não apreciei a pintura de cenários a lembrar-me filmes mágicos e infantis como Mary Poppins, mas talvez tenha contribuído para um mais baixo orçamento. Ou foi propositado, “o véu diáfano da fantasia sobre a nudez crua da realidade”. Quem sabe…. Felizmente, tudo o resto é a três dimensões (pelo menos, na realidade). Envaideço de cada vez que os portugueses fazem alguma coisa digna de ser vista. É uma relação de família: puxo por eles e dilato de orgulho quando se saem bem. Não sei se patriotismo, é um sentimento de proximidade.
Desconheço os autores dos diálogos, mas são uma delícia que agarra o espírito arguto e crítico-satírico de Eça, o vai buscar à obra. Deliciosamente fiéis. Fora do curricular das novelas, também os actores são profissionais sem mácula (a criança não é grande coisa). Devo acrescentar que a própria filmagem dá cartas ( a realização?). Filmar desde o início a rodar a câmara para mostrar a totalidade em várias perspectivas,  é induzir uma espécie de realismo circular onde o espectador se enreda ele mesmo - a mim deu-me tonturas, obrigando-me a fixar outro ponto para poder re-olhar. Talvez o cineasta tenha tido esse intento, reivindicar o seu modo de olhar Eça e os Maias. Muito bem, João Botelho! Para ti, a minha salva de palmas. Estou mesmo contente com o teu trabalho. Isto apesar de não te conhecer fora dos filmes.
Com efeito, apercebemo-nos de que há qualquer coisa em Carlos – um actor soberbo de que não fixei o nome – que Eça não dá e nem quer dar: humanidade e nobreza de sentimentos que o tornam simpático ao espectador, o retiram do mundo meio blasé a que pertence e o tornam único, quase em contraste com o excesso de brilho falso. Eça criou um Carlos que se deixa enredar no amor, mas é menos pungente, mais corrompido pela civilização, mais sarcástico e exterior às questões que o rodeiam. Mas o espectador tem um Carlos bem formado, inexperiente nas lides do coração, mas quase sempre bastante sensível aos problemas do mundo. Constante a corrigir a má formação de quem o frequenta, é pedra de primeira água. Para além da primeira frase, estendido no canapé do consultório onde recebe depois a visita de João da Ega, e do repúdio entediado perante os arroubos da Gouvarinho, Carlos surge perfeito, o amante ideal, o companheiro a que se aspira.  Personagem de sonho, tocado por um amor maior que a tudo cede. E tudo é, neste caso, muita coisa.
Maria Eduarda também não será bem a de Eça, mas foi suprema a escolha da actriz que em tudo se assemelha às heroínas queirosianas, qualquer coisa de extrema delicadeza na figura, o encanto do cabelo alourado, a tez alva, a perfeição das linhas do rosto, brancura de dentes sem defeito; e de João Botelho puxou uma sensualidade inocente que não deve aos melhores filmes do mundo. As questões amorosas não têm, como é natural no escritor, o pendor erótico e sensual que João Botelho lhes soube dar. Contudo, Eça era tão humano! Tão humano que a moral não curva o resto. Não de imediato. Neste caso, a moral apresenta-se como dever da razão e, diríamos, da natureza humana, contra o coração e o corpo. Dois contra um. E quando João Da Ega lhe grita: “já lá vão três dias que diabo…”, nós, que a sabermos de um caso destes lhe cravávamos o machado moralista, enojávamos, no cinema compreendemos, achamos natural que um amor assim virulento não morra num repente, de uma carta fechada num cofre. Morre em dez anos. O que é proscrito em grau maior, tem de morrer. Must.

Oh! Imparável Eça, quanto te agradeço teres nascido!

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