As
histórias que eu sei! Umas por tê-las vivido, outras porque aconteceram dentro ou fora de mim. E ainda as que nunca foram história, mas consigo agora vê-las assim. Como
por exemplo a história das camas. Das minhas camas. Ainda não consegui entender
por que razão não existem mais histórias com camas. Esclareço: histórias de
cama todos contam, à boca fechada ou às escâncaras, em doce penumbra ou penumbrosas, grosseiras ou made in heaven,
realistas e técnicas ou românticas e mergulhadas em souplesse. Deixo-as a contadores profissionais, que, feitos
corajosos, mergulham de cabeça no maior enredo da humanidade, não existe coisa
mais simples nem de mais extensa e abrangente interpretação. Tenciono,
portanto, perder-me em pormenores de interesse exclusivo que pressuponho dissemelhantes de apimentados amores, bem e mal resolvidos, a duas, uma ou mais vozes. Quem não queira ler desista já, porque me preenchi toda de palavras para chamar aqui o raro lugar onde corpo e alma se abandonam e abandonados se restituem: as camas
Quando
eu nasci, morreu na minha aldeia uma mulher ainda jovem e foi convicção geral que lhe herdei
a alma. Suspeito que acertaram, a minha alma é enrugada em demasia.
Portanto, ou a reencarnação existe, ou nasci com defeito que não é o tal pecado
original que nem pressentimos, cujo até não nos faz diferença nenhuma, já que ninguém fica a rir. No entanto, não terá sido a natureza da alma que me levou para
um caixotinho de fruta forrado com uma almofada e uns lençóis de ocasião que a solicitude desembaraçada da minha avó aprestou, rasgando um lençol seu que me vestiu e tapou.
Devo a minha primeira cama, entre outros múltiplos e menores factores, à
condição de miséria que o grosso dos portugueses vivia. Uma pobreza funda
e sem resgate a que os políticos da época condenaram este povo que desde sempre
lhes sofre os desvarios. Hoje, bem gostaria de atirar o caixote da fruta à
cabeça de Oliveira Salazar e Américo Tomaz, mas tal não é possível. Sobra-me a
intenção tornada propósito: no que dependa de mim, tal situação de miséria não
se repete.
Esse
berço improvisado, onde as gentes só de olhar vaticinavam num sussurro, “morre
de certeza; é pequena demais, não se aguenta”, não me existe na memória e soube
dele por mãe e avó.
A lembrança
mais antiga de um leito vem-me da “minha caminha”. A “minha caminha” era o meu
único bem e soube-me sempre a colchões de nuvem: em ferro, estreita - à época era-me bem larga -, com
florinhas em vez de maçanetas, pintada em cor-de-rosa pálido, hoje dito “um tom
pastel”. Não conheci cama mais comprida e que mais me tenha agradado. Se acaso
lhe experimentava o fim, chegava com a cabeça a meio do comprimento da cama e os
meus pés por mais que os esticasse, não tocavam na grade posterior. Concluía
portanto, e com propriedade, que era enorme. Nela vivi experiências
inesquecíveis: à parte as vezes em que os pesadelos me faziam cair e a achava
alta demais, era perfeita. O meu tio ensinou-me a fazer uma barraquinha com o
lençol de cima sobre os espaldares, tirávamos as quatro flores – que desenroscavam
– esticávamos o lençol e depois voltávamos a colocar as flores sobre ele. E
pronto. Depois íamos os dois ler, deitados na cama transformada em tenda. A pouca idade circunscrevia-me aos bonecos do Fantasma e do detective Rip Kirby e sua secretária
suprema, óculos mirabolantes, deveras apreciável. Uma mola da roupa a
prender o lençol e eu ficava a espreitar por uma janelinha; levar brinquedos era proibido, sujavam os lençóis. O meu tio entretinha-se a ler o completo de
uma tarde, mas eu pouco aguentava e breve lhe pedia que me vestisse e calçasse
para ir à rua.
Não me lembro de gostar da cama dos meus pais, havia nela um cheiro estranho e o meu pai não me pegava como o meu tio ou o meu avô, tinha dedos muito duros que me magoavam braços e pernas e não me fazia cavalinhos como eles. O meu pai não aprendera o tempero da seda carinhosa que passava nos dois. Há amores difíceis.
Não me lembro de gostar da cama dos meus pais, havia nela um cheiro estranho e o meu pai não me pegava como o meu tio ou o meu avô, tinha dedos muito duros que me magoavam braços e pernas e não me fazia cavalinhos como eles. O meu pai não aprendera o tempero da seda carinhosa que passava nos dois. Há amores difíceis.
(continua)
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