terça-feira, 2 de setembro de 2014

História com Camas

As histórias que eu sei! Umas por tê-las vivido, outras porque aconteceram dentro ou fora de mim. E ainda as que nunca foram história, mas consigo agora vê-las assim. Como por exemplo a história das camas. Das minhas camas. Ainda não consegui entender por que razão não existem mais histórias com camas. Esclareço: histórias de cama todos contam, à boca fechada ou às escâncaras, em doce penumbra ou penumbrosas, grosseiras ou made in heaven, realistas e técnicas ou românticas e mergulhadas em souplesse. Deixo-as a contadores profissionais, que, feitos corajosos, mergulham de cabeça no maior enredo da humanidade, não existe coisa mais simples nem de mais extensa e abrangente interpretação. Tenciono, portanto, perder-me em pormenores de interesse exclusivo que pressuponho dissemelhantes de apimentados amores, bem e mal resolvidos, a duas, uma ou mais vozes. Quem não queira ler desista já, porque me preenchi toda de palavras para chamar aqui o raro lugar onde corpo e alma se abandonam e abandonados se restituem: as camas
Quando eu nasci, morreu na minha aldeia uma mulher ainda jovem e foi convicção geral que lhe herdei a alma. Suspeito que acertaram, a minha alma é enrugada em demasia. Portanto, ou a reencarnação existe, ou nasci com defeito que não é o tal pecado original que nem pressentimos, cujo até não nos faz diferença nenhuma, já que ninguém fica a rir. No entanto, não terá sido a natureza da alma que me levou para um caixotinho de fruta forrado com uma almofada e uns lençóis de ocasião que a solicitude desembaraçada da minha avó aprestou, rasgando um lençol seu que me vestiu e tapou. Devo a minha primeira cama, entre outros múltiplos e menores factores, à condição de miséria que o grosso dos portugueses vivia. Uma pobreza funda e sem resgate a que os políticos da época condenaram este povo que desde sempre lhes sofre os desvarios. Hoje, bem gostaria de atirar o caixote da fruta à cabeça de Oliveira Salazar e Américo Tomaz, mas tal não é possível. Sobra-me a intenção tornada propósito: no que dependa de mim, tal situação de miséria não se repete.
Esse berço improvisado, onde as gentes só de olhar vaticinavam num sussurro, “morre de certeza; é pequena demais, não se aguenta”, não me existe na memória e soube dele por mãe e avó.
A lembrança mais antiga de um leito vem-me da “minha caminha”. A “minha caminha” era o meu único bem e soube-me sempre a colchões de nuvem: em ferro, estreita - à época era-me bem larga -, com florinhas em vez de maçanetas, pintada em cor-de-rosa pálido, hoje dito “um tom pastel”. Não conheci cama mais comprida e que mais me tenha agradado. Se acaso lhe experimentava o fim, chegava com a cabeça a meio do comprimento da cama e os meus pés por mais que os esticasse, não tocavam na grade posterior. Concluía portanto, e com propriedade, que era enorme. Nela vivi experiências inesquecíveis: à parte as vezes em que os pesadelos me faziam cair e a achava alta demais, era perfeita. O meu tio ensinou-me a fazer uma barraquinha com o lençol de cima sobre os espaldares, tirávamos as quatro flores – que desenroscavam – esticávamos o lençol e depois voltávamos a colocar as flores sobre ele. E pronto. Depois íamos os dois ler, deitados na cama transformada em tenda. A pouca idade circunscrevia-me aos bonecos do Fantasma e do detective Rip Kirby e sua secretária suprema, óculos mirabolantes, deveras apreciável. Uma mola da roupa a prender o lençol e eu ficava a espreitar por uma janelinha; levar brinquedos era proibido, sujavam os lençóis. O meu tio entretinha-se a ler o completo de uma tarde, mas eu pouco aguentava e breve lhe pedia que me vestisse e calçasse para ir à rua. 
             Não me lembro de gostar da cama dos meus pais, havia nela um cheiro estranho e o meu pai não me pegava como o meu tio ou o meu avô, tinha dedos muito duros que me magoavam braços e pernas e não me fazia cavalinhos como eles. O meu pai não aprendera o tempero da seda carinhosa que passava nos dois. Há amores difíceis.
(continua)

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