Após muitas peripécias e várias camas a que não me liguei, à média de uma por
ano lectivo, aterrei na Baixa da Banheira, lugar que não passa pela mente de
ninguém que exista, antes parecendo nome inventado por autor sul americano
muito dado à gargalhada. Mas acontece que é real.
Trabalhei e quase arrisco
dizer que fui feliz nesse lugar atípico onde as ruas têm um número em vez de
nome, as raças convivem numa mistura intrincada de desaguisados que metem
revolver ou protestos de pôr interiores à mostra, as navalhas de ponta e mola sem evasivas. Ao fundo da rua treze, o emblema de marca: junto a um prédio cabisbaixo, arrependido da vida até às fundações, porta entreaberta, a cigana, sombra negra e larga a avultar, atroava
aos gritos por um filho, um marido, um qualquer coisa que lhe faltava.
Então, o frenesim dos graffitis
enchia grosseiramente paredes e muros, facto que me intrigava. Admirava-me que
um desenho sem graça aparecesse tão repetido e mesmo sobreposto a negro ou vermelho em alguns murais espectaculares, a desfigurá-los. Havia um constante de gente barulhenta
e diurna na rua e eu imaginava que, se pudesse sobrevoar a localidade, captaria um zunzum de vozes misturadas. Porém, no túnel do apeadeiro, a coberto da escuridão, quando
os comboios já rareavam e os carris desiludiam de abandono, juntava-se uma
chusma de encapuçados, de ar pouco abonatório e que nunca me molestaram,
passando eu tanta vez entre eles, que se arredondavam estratégicos na única
saída, talvez para me avaliarem o ímpeto. Habituámo-nos uns aos outros e ao
passar, cumprimentava-os sem resposta. À meia noite, o apeadeiro deserto, não fora a sua presença e só
o relógio da igreja me acompanharia. Porém, mal avistava o
fim dos degraus, eles ali, apinhados e soturnos, a segredar o que eu imaginava
serem códigos e podia ser outra coisa.
Seis anos a habitar uma
casa tão despida de tudo que não se entende a permanência. Só pode ter sido um
caso de amor bicudo.
A verdade é que foi o lugar onde mais gostei de viver. Sem esquentador, frigorífico,
aspirador…nada. Pela segunda vez, dormia num divã que eu mesma adquiri. Agradava-me
a simpatia da proprietária e o facto de pouco frequentar o que era seu. De imediato, senti a casa como minha e sacrifiquei tudo o resto a essa ligação independente. No
entanto, a cama de que tenho mais saudade é contemporânea do tempo em que levei
comigo a mana caçula e adormecia num
colchão que transitava todas as noites para o chão de alcatifa, ela a dormir no
divã. Nesse lugar onde caía semi morta de cansaço, arranjei uma rinite matinal
e persistente que me fazia chegar ao trabalho com uma copiosa constipação que
só desencostava perto do almoço, após a derrota de dois maços de lenços.
Foi um tempo de magros períodos de sono. Ainda assim, sonhava histórias
cheias de voltas, sempre a cores e com muito pormenor. Lamento não as ter
descrito. Além de um enredo gracioso, eram bem-humoradas e “acabavam bem”,
coisa que hoje já não consigo; quando dou por mim estou a enterrar os
personagens, a trucidá-los sem mais nem quê, sinal de que tenho de parar a
escrita ou ainda monto uma agência funerária. Nessa altura, acordar era uma curiosidade
feliz. Todas as manhãs, pesadelos adormecidos ou a desgostar da pernoita na
alcatifa, era surpreendida pela memória de sonhos que me predispunham para o
dia.
Seja como for, algumas camas depois, tenho saudade àquela independência e
leveza de dormir e acordar. Que não tem volta, bem o sei. Porque o seu nome é
juventude e não outro. No céu onde decerto está, a minha boa e
idosa hospedeira deve rir-se ainda do tresloucado de afirmar que só em sua
casa dormi a contento. Tive o cuidado de lho dizer em vida. Reitero agora na morte.
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