terça-feira, 9 de setembro de 2014

História com Camas

O período em que menos valorizei a cama correspondeu à necessidade de a habitar em permanência no infecto-contagioso. Ficou-me a ideia de poder levantar a cabeceira com uma rodinha e o desconforto de um resguardo de oleado sob o lençol. Na convicção de que morreria de tristeza no local, fiz petições e o mais que consegui para mudarmos de residência (a doença e eu) e fui parar a um sanatório. Esse tempo de internamento prima pela variedade, há os episódios patuscos, tristes, românticos, ternos e até um com veia policial. Digamos que a minha experiência foi a sério. A viver ao centímetro.
 Ora, para além da cama tradicional e normalíssima num quarto que partilhava com duas senhoras, havia uma outra que me pertencia e onde passava bastas horas – umas por obrigação e outras num exercício de voluntariado que muito me atraía. Era uma cadeira de repouso, com um colchão, almofadas e uma manta de viagem só para mim. Todos os quartos tinham uma porta-janela sempre aberta, em absoluta indiferença às rotações e translações da terra. Atravessando-a, cada doente acedia à sua cadeira no alpendre que prolongava o quarto. A minha, foi bem amada. Considerava-a um luxo e abençoava a ideia de constituir parte obrigatória da terapia diária, que cumpria escrupulosamente – durante duas horas ficava ali sentadinha, só a respirar. Era proibida qualquer actividade e a constância vigilante das enfermeiras não abdicava do rigor. O repouso da manhã e da tarde eram lei, mas a gestão do tempo restante dependia de cada um. O rádio do meu avô acompanhava-me o descanso mudamente, a fazer paciências sobre a mesinha ao lado da cadeira. Logo que as colegas se levantavam, ligava um botão urgente que lhe abria a voz, puxava das almofadas e recomeçava a ler um livro  ou a escrever as minhas longas cartas, decerto para castigo das poucas pessoas que as recebiam. Nessa cama de rua com certo ar de garridice bisbilhoteira, iniciei o bordado em ponto cruz numa toalha de mesa do sanatório que, a despeito de ter ensinado a um ror de gente, ninguém se propôs continuar; conversei longamente com colegas e enfermeiras; porfiei em ensinar a ler uma colega que breve me enjoou porque aprender dava trabalho e ler era muito aborrecido; escrevi aerogramas diários em nome dessa jovem que não queria aprender, a inventar uma relação que não existia e o resultado foi bastante imprevisto; ouvi muito desabafo de enfermeiras, muita queixa de amor, algumas lágrimas inevitáveis, dei por muita vida em espera, dentro e fora daquele casarão. As enfermeiras comentavam que os passantes olhavam a minha cadeira e gostavam de se chegar, a conversar um bocadinho. Então, o regulamento não autorizava os homens a parar nas nossas varandas; passavam vários, todos num olá breve. 
Sinto profunda ternura pela gente boa que ali encontrei, que me fez bem e acarinhou, o sector masculino a abrir alas para entrarmos primeiro no refeitório, deixem passar a nossa menina. 
A verdade é que o sanatório foi um bálsamo na minha vida. Ele inteiro foi a minha cadeira de repouso. E tanto a necessitava depois de tão funda guerra.

 (continua)

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