O período em que menos valorizei a cama correspondeu à necessidade de a
habitar em permanência no infecto-contagioso. Ficou-me a ideia
de poder levantar a cabeceira com uma rodinha e o desconforto de um resguardo
de oleado sob o lençol. Na convicção de que morreria de tristeza no local, fiz
petições e o mais que consegui para mudarmos de residência (a doença e eu) e
fui parar a um sanatório. Esse tempo de internamento prima pela variedade, há
os episódios patuscos, tristes, românticos, ternos e até um com veia policial.
Digamos que a minha experiência foi a sério. A viver ao
centímetro.
Ora, para além da cama tradicional e
normalíssima num quarto que partilhava com duas senhoras, havia uma outra que
me pertencia e onde passava bastas horas – umas por obrigação e outras num
exercício de voluntariado que muito me atraía. Era uma cadeira de repouso, com
um colchão, almofadas e uma manta de viagem só para mim. Todos os quartos tinham
uma porta-janela sempre aberta, em absoluta indiferença às rotações e translações da terra. Atravessando-a, cada doente acedia
à sua cadeira no alpendre que prolongava o quarto. A minha, foi bem amada.
Considerava-a um luxo e abençoava a ideia de constituir parte obrigatória da
terapia diária, que cumpria escrupulosamente – durante duas horas ficava ali
sentadinha, só a respirar. Era proibida qualquer actividade e a constância
vigilante das enfermeiras não abdicava do rigor. O repouso da manhã e da tarde eram lei, mas a gestão do tempo restante dependia de cada um. O
rádio do meu avô acompanhava-me o descanso mudamente, a fazer paciências sobre a mesinha ao lado da cadeira. Logo que as
colegas se levantavam, ligava um botão urgente que lhe abria a voz, puxava das almofadas e recomeçava a ler um livro ou a escrever as minhas
longas cartas, decerto para castigo das poucas pessoas que as recebiam. Nessa cama de rua com certo ar de garridice bisbilhoteira, iniciei o bordado em ponto cruz numa toalha de mesa do sanatório que,
a despeito de ter ensinado a um ror de gente, ninguém se propôs continuar;
conversei longamente com colegas e enfermeiras; porfiei em ensinar a ler uma
colega que breve me enjoou porque aprender dava trabalho e ler era muito
aborrecido; escrevi aerogramas diários em nome dessa jovem que não queria
aprender, a inventar uma relação que não existia e o resultado foi bastante imprevisto;
ouvi muito desabafo de enfermeiras, muita queixa de amor, algumas lágrimas
inevitáveis, dei por muita vida em espera, dentro e fora daquele casarão. As
enfermeiras comentavam que os passantes olhavam a minha cadeira e gostavam de se chegar, a conversar um bocadinho. Então, o regulamento não autorizava os
homens a parar nas nossas varandas; passavam vários, todos num olá breve.
Sinto profunda ternura pela gente boa que ali encontrei, que me fez bem e acarinhou, o sector masculino a abrir alas para entrarmos primeiro no refeitório, deixem passar a nossa menina.
Sinto profunda ternura pela gente boa que ali encontrei, que me fez bem e acarinhou, o sector masculino a abrir alas para entrarmos primeiro no refeitório, deixem passar a nossa menina.
A verdade é que o sanatório foi um
bálsamo na minha vida. Ele inteiro foi a minha cadeira de repouso. E tanto a
necessitava depois de tão funda guerra.
(continua)
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