terça-feira, 17 de março de 2015

Zita do Caco

A quantidade de humores que transportamos conformados ao que supomos ser a nossa imagem! Conhecera-a há pouco mais de uma hora e tinha sucedido como naquelas jogos em que cada sobreposição da imagem sobre uma mesma figura inicial e rudimentar contribui para a nitidez e riqueza final. Fora assim connosco. A mulher que saíra da rodoviária era apenas esboço, faltava-lhe substância. Se me perguntassem por ela eu diria, ah, aquela mulher muito carregada, toda pendurada para um lado e que encontrei logo pela manhã. E a memória dela ficaria a adejar por uma hora ou até um pouco menos. A memória só desperta para a duração se colaboramos. Não sei se guarda por afinidades, mas pressinto que seja sensível e se deixe impressionar pela força com que vivemos pessoas, acontecimentos, situações.  Zita vivia nesse paralelo invulgar dos seres que se entregam à vida sem desvios protocolares; não era refinada ou bela; não tinha boa conversa. Mas entrava por nós dentro sem aviso, inconsciente da intrusão.
Pensava já no regresso, entregando-a àquela osmose benfazeja, quando lhe reparei os movimentos dos lábios. Julguei que cantava, tão suave era a expressão. Porém, ainda que não entendesse uma palavra, dei-me conta de que balbuciava a espaços, presa da massa líquida. Arrepiei caminho prenhe de embaraço, assaltado por um desvario de pudor como se a tivesse desnudado ou visto em combinação – estou crente que a usava –. Apressei-me na recolha do saco, convicto de ter presenciado dois momentos íntimos na vida daquela mulher. E, um tanto apreensivo com o teor dos meus pensamentos - pruridos e tagatés não combinam muito comigo -, plantei-me a esperá-la como se nada fosse, na maior discrição, também para fugir à curiosidade do pessoal no escritório.
Voltou renovada. Trazia um vagar novo de passos, uma leveza de gestos que suplantavam os sapatos empapados de água e areia, numa súplica de corpo todo, acudam, acudam que morremos, o cabelo húmido em revoada sem tino. Desanuviada, parecia mais jovem. Passei-lhe a encomenda e preparava-me para um adeus até outro dia, quando ela, mão direita solene a pousar-me  no antebraço
- Muito obrigada. O mar é a coisa mais bonita que já vi no mundo. Sem a sua ajuda não lhe punha a vista em cima. Se algum dia for à Igrejinha…
Então a pergunta veio-me de novo, saiu-me num rompante inadvertido
- Zita, com quem é que falava no barco?
Ela seriíssima, olhos nos olhos
- Com Deus. – e ao ver a minha expressão - Não acredita. Não vem mal ao mundo por isso, deixe lá. Olhe eu não sou de missas nem de igreja, nem sei se o Deus que me escuta é um Cristo, até acho, Deus me perdoe se digo mal, que não tem retrato. Mas é verdade que falo muito com ele, converso, quero dizer. O senhor sabe lá os mundos calados que uma mulher atravessa. É que não têm tamanho. Tanta gente a passar-nos à soleira sem um reparo ou olhar que seja. Não é tanto para pedidos que o requeiro, que não preciso. É para lhe contar, que sempre me ouve, tenho certeza. Sabe o senhor, desabafo com quem não entristece de ouvir. E aproveito para agradecer a gente boa que me tem posto na frente – abriu um sorriso tímido e confidenciou baixando a voz –. Ainda agorinha, ali rentinho à maré, o agradeci a si. E também pedi que lhe tomasse conta, que o senhor precisa.
- Mas eu não sou crente – rematei a sorrir
- Não carece. Deus é pai de todos, não anda cá a escolher este e aqueloutro. Por isso é que é Deus.  -  e como se já tivesse dito demais - Então até logo e obrigadinho por tudo – e desandou em direcção ao autocarro.

Fiquei um momento a observar-lhe a inclinação da silhueta até se perder no interior do veículo já a bufar impaciências de gasóleo. Em seguida, encaminhei-me  para o escritório. No elevador, rememorei a nossa conversa  e intriguei  no  “até logo” final. Talvez esperasse que nos encontrássemos no barco. Ou, avessa a despedidas, optasse pelo adeus mais suave. Sorri,  “até logo”, deixa a mesa posta ao reeencontro. 

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