sexta-feira, 6 de março de 2015

Isalinda

A princípio, a escola pareceu-me um lugar esquisito. Não podíamos levantar-nos das carteiras sem licença. Nunca tinha visto uma mesa inclinada pegada a um banco e isso até gostei, púnhamos os lápis lá em cima e eles escorregavam que era uma beleza, se fossem esquinadinhos – e eram quase todos - davam uns pulinhos pequenos que até parecia que iam a saltar degraus. Era local silencioso, em voz alta só a professora e nós para ela; uns com os outros, apenas murmúrios e  em caso de necessidade. Experimentei falar por sinais com o meu parceiro, mas fazia-nos rir e levámos uma chapada cada um que nos deixou os olhos alagados e uma vermelhidão a alastrar na bochecha, a outra toda lampeira, a saltar a protuberância do nariz num acento vingativo, toma que já almoçaste. Não podíamos sair dos lugares sem pedir, minha senhora dá licença. Ninguém ia fazer chichi sem autorização e havia umas casinhas chamadas casas de banho – pensava que eram para as pessoas se banharem, mas não - onde ela nos levou a apontar uma coisa branca que eu nunca tinha visto, “chama-se sanita, ali é que se faz o chichi e o resto”. Olhei com atenção e reparei que aquilo não era um penico nem nada e cheirava muito pior. Na escola ninguém mijava, toda a gente fazia chichi. Se algum catraio se enganava e lhe saltava a língua para o hábito, a mestra logo a travá-lo num agastamento, então, o que é isso?! Um dia espreitei a casa de banho dos rapazes e era diferente, eles chamavam-lhe urinóis. O meu pai para o meu irmão, é um cheiro a órina que na se pode. E o meu irmão a rir, cheira mal, tá tudo cheio de mijo, a gente não acerta nos buracos e é muito gaiato a fazer pontaria; e os homens da taberna também lá vão, e sujam tudo; às segundas feiras está tudo cheio de vomitado roxo. Deve ter sido por esse tempo que comecei a gostar de ser rapariga, o que eu inchava se a professora, “as raparigas” e eu lá dentro, até parece que crescia. Fazia chichi sentada na beirinha da sanita, os pés no ar, mãos fincadas no frio da louça, a segurar o corpo em equilíbrio, temendo escorregar e cair dentro daquela fundura. Só por urgência maior ali entrava, respiração contida por mor do mau cheiro e, para me tranquilizar, trazia à mente o desafogo de atrás das moitas cheirando a mato e terra aquecidos de sol, olhos entretidos com formigas e outros bicharocos que, talvez estupefactos de mim, que é isto, intrigavam pés acima enquanto eu, de cócoras, puxava as cuecas e agarrava as saias pela cintura para não haver surpresas mal cheirosas.
Mas a escola era um mundo diverso e todas as raparigas se sentavam com mil cuidados naquele apetrecho desconhecido, receando deixar cair alguma coisa dentro da sanita. Corria o boato de que objecto perdido, nunca mais se encontrava. De lábios enojados e a repelir confianças, contavam histórias de ganchos de cabelo, lenços de assoar, alfinetes e outras coisas que desapareciam sugadas pela imundície. Depois do recreio, a professora para o Alberto que era crescido, barba a despontar, vai lá deitar dois baldes de água em cada casa de banho. Ainda hoje não entendo como é que o Alberto aguentava aqueles cubículos fedorentos.

Quando me habituei à escola, respondia a ser rapariga e andava cheia de contente por ter uma carteira minha e do meu parceiro com um tinteiro só nosso, um lugar para lápis e canetas e o descanso da minha mala a proteger-me as costas. No dia da vacina, mal a figura do médico se desenhava no aro da porta, sem outra escapatória,  eu recuava as costas inteirinhas e sentia a dureza do cartão como uma mão amiga a segurar-me o medo. Se a professora me tem deixado levar a vacina encostada na mala, palpita-me que não faria a triste figura que sempre fiz. Nesses momentos de aflição, o meu parceiro entrava numa risota de nervos que quase sempre a professora calava com um tabefe enquanto a enfermeira dava um toque de dedo sábio no frasquinho do pó e ele caía sem barulho dentro do soro. Mas, descontando o inteiro terror de esperar pela vez na toma da vacina - as agulhas eram mais que grandes e arrepiava-me pensar que me entrava uma coisa daquelas no braço – a escola era uma alegria. Embora não pensasse muito nisso, e contrariando os prognósticos do meu pai face à minha inépcia com letras e números, “esta gaiata vai ser ainda mais burra que as filhas do ti Galinha que nunca fizeram a quarta classe”, ia contente para a escola. Em minha casa limitava-me a ser dona de um mocho pequenino feito por meu avô. No mais, dividia cama e roupa com os meus irmãos e dormíamos na cozinha. Por isso, ter ali um lugar só meu era uma coisa bonita, de valor. E, ao contrário do que acontecia no lar, ninguém me disputava o lugar. Se eu faltava, com certeza a carteira ficava a entristecer e notava-se a minha ausência. Alguém faltar à escola era como cair um dente a uma pessoa, ficava só o sítio. Fazer quilómetros a pé não me moía o juízo e nem me importava com chegar molhada, gelada até ao osso, ou almoçar na escola um farnel ligeiro e frio. Era apontada com inveja pelos outros, ela atravessa um pinhal para cá chegar, as mães numa pena compungida, coitadinha, vem sozinhita de tão longe! E eu a insuflar de ser assunto em conversas de gente grande. 

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