A
princípio, a escola pareceu-me um lugar esquisito. Não podíamos levantar-nos
das carteiras sem licença. Nunca tinha visto uma mesa inclinada pegada a um banco
e isso até gostei, púnhamos os lápis lá em cima e eles escorregavam que era uma
beleza, se fossem esquinadinhos – e eram quase todos - davam uns pulinhos
pequenos que até parecia que iam a saltar degraus. Era local silencioso, em voz
alta só a professora e nós para ela; uns com os outros, apenas murmúrios e em
caso de necessidade. Experimentei falar por sinais com o meu parceiro, mas
fazia-nos rir e levámos uma chapada cada um que nos deixou os olhos alagados e uma
vermelhidão a alastrar na bochecha, a outra toda lampeira, a saltar a
protuberância do nariz num acento vingativo, toma que já almoçaste. Não podíamos sair dos lugares
sem pedir, minha senhora dá licença. Ninguém ia fazer chichi sem autorização e havia umas casinhas chamadas casas de banho – pensava que eram
para as pessoas se banharem, mas não - onde ela nos levou a apontar uma coisa
branca que eu nunca tinha visto, “chama-se sanita, ali é que se faz o chichi e
o resto”. Olhei com atenção e reparei que aquilo não era um penico nem nada e
cheirava muito pior. Na escola ninguém mijava, toda a gente fazia chichi. Se
algum catraio se enganava e lhe saltava a língua para o hábito, a mestra logo a
travá-lo num agastamento, então, o que é
isso?! Um dia espreitei a casa de banho dos rapazes e era diferente, eles
chamavam-lhe urinóis. O meu pai para o meu irmão, é um cheiro a órina que na se pode. E o meu irmão a rir, cheira mal, tá tudo cheio de mijo, a gente
não acerta nos buracos e é muito gaiato a fazer pontaria; e os homens da taberna
também lá vão, e sujam tudo; às segundas feiras está tudo cheio de vomitado roxo.
Deve ter sido por esse tempo que comecei a gostar de ser rapariga, o que eu
inchava se a professora, “as raparigas” e eu lá dentro, até parece que crescia.
Fazia chichi sentada na beirinha da sanita, os pés no ar, mãos fincadas no frio
da louça, a segurar o corpo em equilíbrio, temendo escorregar e cair dentro daquela
fundura. Só por urgência maior ali entrava, respiração contida por mor do mau
cheiro e, para me tranquilizar, trazia à mente o desafogo de atrás das moitas
cheirando a mato e terra aquecidos de sol, olhos entretidos com formigas e
outros bicharocos que, talvez estupefactos de mim, que é isto, intrigavam pés
acima enquanto eu, de cócoras, puxava as cuecas e agarrava as saias pela
cintura para não haver surpresas mal cheirosas.
Mas
a escola era um mundo diverso e todas as raparigas se sentavam com mil cuidados
naquele apetrecho desconhecido, receando deixar cair alguma coisa dentro da
sanita. Corria o boato de que objecto perdido, nunca mais se encontrava. De
lábios enojados e a repelir confianças, contavam histórias de ganchos de
cabelo, lenços de assoar, alfinetes e outras coisas que desapareciam sugadas
pela imundície. Depois do recreio, a professora para o Alberto que era crescido,
barba a despontar, vai lá deitar dois baldes de água em cada casa de banho. Ainda
hoje não entendo como é que o Alberto aguentava aqueles cubículos fedorentos.
Quando
me habituei à escola, respondia a ser rapariga e andava cheia de contente por
ter uma carteira minha e do meu parceiro com um tinteiro só nosso, um lugar
para lápis e canetas e o descanso da minha mala a proteger-me as costas. No dia
da vacina, mal a figura do médico se desenhava no aro da porta, sem outra escapatória,
eu recuava as costas inteirinhas e
sentia a dureza do cartão como uma mão amiga a segurar-me o medo. Se a
professora me tem deixado levar a vacina encostada na mala, palpita-me que não
faria a triste figura que sempre fiz. Nesses momentos de aflição, o meu
parceiro entrava numa risota de nervos que quase sempre a professora calava com
um tabefe enquanto a enfermeira dava um toque de dedo sábio no frasquinho do pó
e ele caía sem barulho dentro do soro. Mas, descontando o inteiro terror de
esperar pela vez na toma da vacina - as agulhas eram mais que grandes e arrepiava-me
pensar que me entrava uma coisa daquelas no braço – a escola era uma alegria.
Embora não pensasse muito nisso, e contrariando os prognósticos do meu pai face
à minha inépcia com letras e números, “esta gaiata vai ser ainda mais burra que
as filhas do ti Galinha que nunca fizeram a quarta classe”, ia contente para a
escola. Em minha casa limitava-me a ser dona de um mocho pequenino feito por
meu avô. No mais, dividia cama e roupa com os meus irmãos e dormíamos na
cozinha. Por isso, ter ali um lugar só meu era uma coisa bonita, de valor. E, ao
contrário do que acontecia no lar, ninguém me disputava o lugar. Se eu faltava,
com certeza a carteira ficava a entristecer e notava-se a minha ausência.
Alguém faltar à escola era como cair um dente a uma pessoa, ficava só o sítio.
Fazer quilómetros a pé não me moía o juízo e nem me importava com chegar
molhada, gelada até ao osso, ou almoçar na escola um farnel ligeiro e frio.
Era apontada com inveja pelos outros, ela
atravessa um pinhal para cá chegar, as mães numa pena compungida, coitadinha, vem sozinhita de tão longe!
E eu a insuflar de ser assunto em conversas de gente grande.
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