Depressa
deixei Zita para trás, o dia a rolar devagar, na atonia desinteressante das
horas de expediente. Contudo, quando à tardinha me vi no convés a caminho de
Setúbal, circunvaguei os olhos. Decididamente, ela não se encontrava na cabine
ou no banco sob o mastro. Encolhi os ombros e esqueci-a mal abri o jornal
adiado desde cedo. Mais ou menos a meio do rio amodorrei e senti que as folhas começavam a escorregar. Ensonado, apanhei-as do chão e dobrei-as depositando o
diário no lugar vazio a meu lado. Era hábito
os jornais passarem de mão em mão entre as duas margens. Só na última viagem do
dia, ficando algum ao desmazelo, o funcionário tratava de o recolher. Cruzei as mãos uma sobre a outra e adormeci.
Abri
os olhos com esforço, inexplicável contundência dolorosa a fechar-mos.
Sem ousar um movimento, verifiquei pelas figuras rectas do meu campo visual que não me encontrava no barco. Mirava parte de um tecto claro, um ar condicionado metálico e com barbas e a nudez alta de uma janela. Porém, acima da dor e da estranheza, mau grado lembrar-me que Zita não regressara comigo, palpável e saliente, percorria-me a
sensação da sua companhia; sentia-me envolto na nitidez debruçada do seu sorriso. Em esforço, perguntei, Zita, está aqui.
Porém, julgo que apenas mexi os lábios. Ou terei balbuciado. No entanto, ouvi
distintamente
-
Doutor! Ele acordou.
Atónito,
vi aproximar-se primeiro uma cabeça e em seguida distingui um tronco de bata
branca, estetoscópio ao pescoço. Encontrava-me no hospital de S. Bernardo, deitado na
maca, a inspirar a mistura morna e levemente repugnante do cheiro de doença e
fármacos, acirrada pelo ar condicionado. O doutor aproximou-se e, ajudado por
uma enfermeira - provavelmente a voz de, doutor ele acordou -, pôs-se a
observar-me num ritual inspectivo, quase de peça a peça. Ela num sorrisinho
cúmplice, a tapar e destapar minúcias, e páre de chamar a Zita, não há aqui nenhuma.
O
médico, depois de me perguntar, nome, idade, residência… uma luzinha a
apontar-me os olhos
-
Essa confusão de cabeça já passa. Hoje é o seu dia de sorte. Se não tem
tropeçado…. – e enfatizou as reticências - quem vinha atrás de si não vê motivo ou
explicação para o aparato da queda, mas o automóvel passou alucinado e ceifou a
gente da passadeira. – e com bonomia, a dar-me uma palmadinha no ombro -. Salvo
por um trambolhão, hein? Tem de comemorar.
Passada
uma hora estava na rua, livre de dano maior que uns arranhões e a dor de cabeça
entrada em processo de desinstalação muito cheio de hesitantes vagares.
Intrigado e inconclusivo, segui a caminho de casa pesando o sucedido e suas coincidências e
acasos.
Nos
dias que se seguiram, inquiri a senhora do quiosque, a marinhagem, passageiros
habituais. Ninguém guardava memória de Zita ou nos tinha visto à conversa. Em
desespero de causa, lembrei-me do porteiro e fui procurá-lo confiante no saco
que guardara. Que tinha tirado o dia para ir à terra a um funeral e desconhecia
quem o substituíra. Corri chefias e gabinetes intermédios, falei com paquetes e
coordenadores, ninguém me alumiou ou deu um nome. E eu que o vira e com ele falara, na turvação, nem
sequer dera pela troca. Então, convicto de que todas as coisas tendem naturalmente
para o seu ser que é de todo imperfeito, encerrei o assunto.
Jamais
fui à Igrejinha confirmá-la. Não passei no Pinheiro da Cruz a verificar-lhe o
filho. E continuo descrente. Contudo, em momentos cruciais, regressa-me aquele
sorriso.
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