terça-feira, 17 de março de 2015

Zita do Caco

Depressa deixei Zita para trás, o dia a rolar devagar, na atonia desinteressante das horas de expediente. Contudo, quando à tardinha me vi no convés a caminho de Setúbal, circunvaguei os olhos. Decididamente, ela não se encontrava na cabine ou no banco sob o mastro. Encolhi os ombros e esqueci-a mal abri o jornal adiado desde cedo. Mais ou menos a meio do rio amodorrei e senti que as folhas começavam a escorregar. Ensonado, apanhei-as do chão e dobrei-as depositando o diário no lugar vazio a meu lado. Era  hábito os jornais passarem de mão em mão entre as duas margens. Só na última viagem do dia, ficando algum ao desmazelo, o funcionário tratava de o recolher. Cruzei as mãos uma sobre a outra e adormeci.

Abri os olhos com esforço, inexplicável contundência dolorosa a fechar-mos. Sem ousar um movimento, verifiquei pelas figuras rectas do meu campo visual que não me encontrava no barco. Mirava parte de um tecto claro, um ar condicionado metálico e com barbas e a nudez alta de uma janela. Porém, acima da dor e da estranheza, mau grado lembrar-me que Zita não regressara comigo, palpável e saliente, percorria-me a sensação da sua companhia;  sentia-me envolto na nitidez debruçada do seu sorriso. Em esforço, perguntei, Zita, está aqui. Porém, julgo que apenas mexi os lábios. Ou terei balbuciado. No entanto, ouvi distintamente
- Doutor! Ele acordou.
Atónito, vi aproximar-se primeiro uma cabeça e em seguida distingui um tronco de bata branca, estetoscópio ao pescoço. Encontrava-me no hospital de S. Bernardo, deitado na maca, a inspirar a mistura morna e levemente repugnante do cheiro de doença e fármacos, acirrada pelo ar condicionado. O doutor aproximou-se e, ajudado por uma enfermeira - provavelmente a voz de, doutor ele acordou -, pôs-se a observar-me num ritual inspectivo, quase de peça a peça. Ela num sorrisinho cúmplice, a tapar e destapar minúcias, e páre de chamar a Zita, não há aqui nenhuma.
O médico, depois de me perguntar, nome, idade, residência… uma luzinha a apontar-me os olhos
- Essa confusão de cabeça já passa. Hoje é o seu dia de sorte. Se não tem tropeçado…. – e enfatizou as reticências -  quem vinha atrás de si não vê motivo ou explicação para o aparato da queda, mas o automóvel passou alucinado e ceifou a gente da passadeira. – e com bonomia, a dar-me uma palmadinha no ombro -. Salvo por um trambolhão, hein? Tem de comemorar.
Passada uma hora estava na rua, livre de dano maior que uns arranhões e a dor de cabeça entrada em processo de desinstalação muito cheio de hesitantes vagares. Intrigado e inconclusivo, segui a caminho de casa pesando o sucedido e suas coincidências e acasos.
Nos dias que se seguiram, inquiri a senhora do quiosque, a marinhagem, passageiros habituais. Ninguém guardava memória de Zita ou nos tinha visto à conversa. Em desespero de causa, lembrei-me do porteiro e fui procurá-lo confiante no saco que guardara. Que tinha tirado o dia para ir à terra a um funeral e desconhecia quem o substituíra. Corri chefias e gabinetes intermédios, falei com paquetes e coordenadores, ninguém me alumiou ou deu um nome. E eu que o  vira e com ele falara, na turvação, nem sequer dera pela troca. Então, convicto de que todas as coisas tendem naturalmente para o seu ser que é de todo imperfeito, encerrei o assunto.

Jamais fui à Igrejinha confirmá-la. Não passei no Pinheiro da Cruz a verificar-lhe o filho. E continuo descrente. Contudo, em momentos cruciais, regressa-me aquele sorriso.

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