Baixei
os olhos enquanto as mãos dela, moiras de trabalho, regressavam às asas do saco
que os balanços de acostagem sacolejavam, o silêncio a encaixar no desalento do instante. E Zita erguida
sobre a sorte, olhos secos, semblante desenhado à faca, boca guardada por vincos
fundos, sentinelas da pele que eram gritos de sofrimento. Entretanto, o barco
encostava suavidades a chapinhar no cais enquanto uma revoada de gaivotas em ziguezague
enchia o ar com a sua algazarra belicosa na disputa de peixe e pequenos lixos
de porto. A mulher levantou-se prestes na cadência e ajudei-a com o peso, a
ampará-la de cada vez que o casco embatia nos pneus do cais, a água a engordar
nódoas irisadas de gasóleo. Acautelámo-nos dos veículos que zuniam como abelhas
e guiei-a até ao passadiço de peões sugerindo
- Cada
um pega numa asa. A senhora tem muito caminho pela frente com ele a pesar-lhe.
Zita
assentiu com um aceno e, numa decisão da vontade, arrebitou um sorriso
sacudindo escuridões.
- Pois
claro, obrigada. Hoje é dia de festa, vou ver a luz dos meus olhos e isso é que
vale. E conheci o Sado. Diz que há uma camioneta para o Pinheiro da Cruz, o
senhor não se importa de me ver o horário quando desembarcarmos que eu não sei
onde é?
Anuí a
descansá-la e fizemos o percurso em silêncio, eu meio tolhido, a refrear uma
pergunta debaixo da língua. Acomodei-a junto à gelataria, pedi-lhe que esperasse
um pouco e dirigi-me ao quiosque. Quando regressei guardava a mesma postura,
olhos a beber o rio. Depois de a informar do horário e do lugar do autocarro,
suspirou aliviada. Adiantou o braço esquerdo, deu uma mirada no relógio de pulso antigo, vidro riscado e
bracelete esfolada, e virou-me o pedido
- O
senhor não é capaz de me tomar conta do saco enquanto eu vou ali àquele lado
num instantinho ver o mar?
Consultei
o relógio. Ainda faltava meia hora e trabalhava a dois passos. Agarrei o saco,
desviei-me do caminho e indiquei-lhe a senda palafítica que leva à praia.
- Pode
ir por ali e não se preocupe, só entro às nove e meia e trabalho naquele
edifício, está a ver?
Ela certificou de soslaio as indicações e abriu-me um sorriso grato, quente, como só as mulheres sabem.
Depois, deu meia volta e internou no passadiço.
Fiquei
parado uns instantes, roído na curiosidade dos seus olhos primordiais a olhar o
mar. Observá-la frente ao imenso azul-verde de Tróia. Convicto de
que seria uma oportunidade única, levei o cesto até ao edifício em que
trabalhava, deixei-o na portaria e meti pelo passadiço imediatamente à direita
do que indicara a Zita. O frio húmido e os fiapos de névoa não predispunham, e
a praia deserta reinava sobre o tempo, entregue a si mesma. Na maré baixa, a
rebentação era suave e a areia cama desfeita. Aqui e ali, a esmo com a caligrafia das gaivotas, notações da noite de amor em
vestígios de espuma, pequenas conchas de búzios, caracóis marinhos e outros atentos caprichos de amante.
Zita não me apercebeu. De
pé, sapatos enterrados na areia molhada, a rasar a rebentação, encantava na
paisagem agitada de brisa e sal. Especada. Quieta. Cabelos e cachecol a esvoaçar para
trás, olhos presos na fixidez repetida da ondulação, transfigurava. Imbuía no desusado ser magnético do mar e como que se envenenava dele, em indisfarçável feitiço de
alma. Zita, criada na modorra dos estios e no sofrimento de agruras invernosas. Zita, sorvedouro em aguda atenção. Zita diluída no universo, órgão que pertence ao corpo na adequação mais
funda de si. Ela e a sua raiz de limo à tona do olhar.
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