sábado, 14 de março de 2015

Zita do Caco

Baixei os olhos enquanto as mãos dela, moiras de trabalho, regressavam às asas do saco que os balanços de acostagem sacolejavam, o silêncio a  encaixar no desalento do instante. E Zita erguida sobre a sorte, olhos secos, semblante desenhado à faca, boca guardada por vincos fundos, sentinelas da pele que eram gritos de sofrimento. Entretanto, o barco encostava suavidades a chapinhar no cais enquanto uma revoada de gaivotas em ziguezague enchia o ar com a sua algazarra belicosa na disputa de peixe  e pequenos lixos de porto. A mulher levantou-se prestes na cadência e ajudei-a com o peso, a ampará-la de cada vez que o casco embatia nos pneus do cais, a água a engordar nódoas irisadas de gasóleo. Acautelámo-nos dos veículos que zuniam como abelhas e guiei-a até ao passadiço de peões sugerindo
- Cada um pega numa asa. A senhora tem muito caminho pela frente com ele a pesar-lhe.
Zita assentiu com um aceno e, numa decisão da vontade, arrebitou um sorriso sacudindo escuridões.
- Pois claro, obrigada. Hoje é dia de festa, vou ver a luz dos meus olhos e isso é que vale. E conheci o Sado. Diz que há uma camioneta para o Pinheiro da Cruz, o senhor não se importa de me ver o horário quando desembarcarmos que eu não sei onde é?
Anuí a descansá-la e fizemos o percurso em silêncio, eu meio tolhido, a refrear uma pergunta debaixo da língua. Acomodei-a junto à gelataria, pedi-lhe que esperasse um pouco e dirigi-me ao quiosque. Quando regressei guardava a mesma postura, olhos a beber o rio. Depois de a informar do horário e do lugar do autocarro, suspirou aliviada. Adiantou o braço esquerdo, deu uma mirada no relógio de pulso antigo, vidro riscado e bracelete esfolada, e virou-me o pedido
- O senhor não é capaz de me tomar conta do saco enquanto eu vou ali àquele lado num instantinho ver o mar?
Consultei o relógio. Ainda faltava meia hora e trabalhava a dois passos. Agarrei o saco, desviei-me do caminho e indiquei-lhe a senda palafítica que leva à praia.
- Pode ir por ali e não se preocupe, só entro às nove e meia e trabalho naquele edifício, está a ver?
Ela certificou de soslaio as indicações e abriu-me um sorriso grato, quente, como só as mulheres sabem. Depois, deu meia volta e internou no passadiço.
Fiquei parado uns instantes, roído na curiosidade dos seus olhos primordiais a olhar o mar. Observá-la frente ao imenso azul-verde de Tróia. Convicto de que seria uma oportunidade única, levei o cesto até ao edifício em que trabalhava, deixei-o na portaria e meti pelo passadiço imediatamente à direita do que indicara a Zita. O frio húmido e os fiapos de névoa não predispunham, e a praia deserta reinava sobre o tempo, entregue a si mesma. Na maré baixa, a rebentação era suave e a areia cama desfeita. Aqui e ali, a esmo com a caligrafia das gaivotas, notações da noite de amor em vestígios de espuma, pequenas conchas de búzios, caracóis marinhos e outros atentos caprichos de amante. 

Zita não me apercebeu. De pé, sapatos enterrados na areia molhada, a rasar a rebentação, encantava na paisagem agitada de brisa e sal. Especada. Quieta. Cabelos e cachecol a esvoaçar para trás, olhos presos na fixidez repetida da ondulação, transfigurava. Imbuía no desusado ser magnético do mar e como que se envenenava dele, em indisfarçável feitiço de alma. Zita, criada na modorra dos estios e no sofrimento de agruras invernosas. Zita, sorvedouro em aguda atenção. Zita diluída no universoórgão que pertence ao corpo na adequação mais funda de si. Ela e a sua raiz de limo à tona do olhar.

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