quarta-feira, 11 de março de 2015

Zita do Caco

 Indiferente a singularidades atmosféricas, a mulher olhava desvanecida e parecia conversar ainda que nem um som lhe escapasse. Porém – e isso eu podia observar -,  mexia os lábios tão docemente que esforcei a vista sobre a névoa. Era inegável, não tinha interlocutor visível.
- É o rio Sado – disse eu didáctico, a quebrar-lhe o solilóquio -. Aqui, é rio. Do outro lado, mar, a praia de Tróia. A senhora de onde vem?
Ela sem se virar, olhos a medir o espesso de névoa.
- Da Igrejinha. É ao pé de Évora, o senhor conhece?
- Conheço de nome, nunca lá fui. A que horas chegou à cidade? – retorqui admirado; e em confirmação digital e nevoenta acrescentei - ainda não são nove.
Zita continuava meio alheada, remexendo no saco, ajeitando o que, pelo som, me parecia loiça
- Saí às quatro de casa, apanhei o carro em Évora eram cinco e meia e cheguei aqui ainda era escuro.
Relanceei-a meditabundo, o barco em oscilações que faziam dançar cordame e cesto. Julgava que mulheres de tipo sacrificial já não existiam, que as leis da democracia as tinham finado. A minha aérea juventude conformava a realidade à lei, mas, e a despeito das filosofias que fazem coincidir o ser com o pensamento, no mundo físico e humano não basta pensar para ser. Contudo, esta verdade era-me estranha, vivia ainda desacordado dela. Atentei-lhe melhor na figura e ela, desabituada de atenções, atabalhoou o jogo  de mãos a impedir o cesto de deslizar banco fora e perorou num esgar
 - O senhor não repare, isto que trago por cima é tudo da minha filha, não sou destes preparos, mas ateimou que cai aqui muita humidade e que saía de noite. Coisa de gente nova, que eu até me parece que ando ensaiada.
Pensei no quanto a mulher foi e ainda é treinada na obediência, ensinada a desculpar-se do que culpa não tem, a varrer o chão que pisa, de recuas, tornada uma intocável.
-A sua filha estava certa e fica assim mais agasalhada – respondi ao arrepio do pensamento e dos seus gestos engasgados.
A mulher deixou-me cair a resposta na inutilidade e quase lhe senti o pensamento a desviar. Insatisfeita com o saco das preocupações, recomeçou a alinhar os pertences uns sobre os outros, num desvelo ímpar. Senti a obrigação de me interessar
- Vai muito carregada.
Virou-se num ápice, a destapar conteúdos envolvidos num alvo e avantajado pano de cozinha rematado com biquinhos de crochet e saiu-lhe num alívio
- Isto são umas coisas para o meu Lucas que está preso no Pinheiro da Cruz. Coitadinho, ficou doente, são febres com certeza. De modos que lhe levo uns comerzinhos caseiros lá da gente, que ele pela-se por eles, sempre a pedir-mos quando ia a casa; e mais uns mimos: doces - a mão aberta, a abarcar entre polegar e mínimo a largura de dois tupperwares pejados -, uma frutinha sem cura - exibia uma maçã vermelha -, uns queijinhos de azeite - e acenava com um saco plástico - e alguma roupa de baixo - passou um dedo a revisar uma rima de cuecas e T-shirts e acrescentou numa dor de alma, acabidando tudo -.  Que aquilo, o comer na prisão deve ser uma lavagem de porcos. – uma nuvem atravessou-lhe o rosto – Sabe o senhor, custa-me a crer que o meu filho foi preso. Veio para Setúbal sozinho a arranjar trabalho ainda nem bem tinha os dezasseis, que só os fazia daí a dois meses. Telefonava que estava como Deus manda e tinha um bom emprego numa fábrica, estimadinho de frio e calores. Que não queria namoradas para juntar mais dinheiro. Ia à Igrejinha todo janota e tão bom pra mim, levava-me sempre uma prenda, até um frigorífico me comprou. As vizinhas a invejar, a Zita do Caco é que tem sorte, filho mais amigo que aquele não pode haver. E depois, vai-se a ver e um dia telefonam lá para a loja onde a gente se avia, que estava no Pinheiro da Cruz – e num à parte -. O senhor pode não acreditar, mas eu nem sabia o que era. – elevou um derreado de tristeza -  Depois, num aperto de coração, que isto está-se vendo que os filhos são sempre filhos, pedi à minha Manuela que fizesse uma chamada para a prisão que eu sozinha  não me entendo com os telemóveis. Ainda tinha esperança que fosse uma mentira que pregavam à gente. 
Endireitou o corpo. Depois, olhos baixos e mãos atarefadas, ensimesmou nas pontas do cachecol a emparelhar-lhes o tamanho como se fosse ponto de honra,  e reatou
- Mas é que era verdade e ainda disseram que o apanharam a guiar um carro roubado e há que tempos que não sabia o que era um emprego, imagine lá a minha aflição – e, dedos grossos a rodar a inconsciência do cachecol no pescoço a um lado e a outro, em mágoa de ferida aberta, surdinou -. A vergonha que não é…só eu é que sei. Nem a mãe de Deus a teve assim, que o filho dela foi sempre de boas contas – e alteando um suspiro –. A vida não é como a gente quer, é como tem de ser.

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