Os
nomes dizem, espelham-nos. De tanto nos chamarem por eles, pertencemos-lhes.
Basta ver que nenhum bebé tem cara de ter seja que nome for. Chamamos-lhe o
nome escolhido entre mil (listas e listas para às vezes acabarem as garotas a
responder por Carla, Vanessa ou os dois a emparelhar) e ele não cola nem condiz.
Olhamos a criança e vem-nos um remorso, o nome fica-lhe mal, sobra-lhe da
figura, é de uma estranheza que raia o desconcerto. E depois, o tempo vai-o
afeiçoando, pulindo aqui e ali arestas de vogais, prumos de consoantes, entranha até ao zénite em que a dupla, nome e criança, se pertencem mutuamente
e não são um sem o outro. Esse é o momento em que a transfiguração ocorre:
aquele é o único nome que serve, está à medida. Podem pensar, também é assim nos
casamentos, as duas pessoas levam anos a burilar e a relação conseguida é estreita
e biunívoca. O tanas. Levam tempo, as que levam. A maioria circunvaga os olhos
pelas redondezas e por ali se perde ou corta-se numa esquina mais afiada de
maus costumes e manda tudo às urtigas: que é impossível viver assim, que o
outro lhe tolhe as liberdades, que mais assim e mais assado, e pega lá o que é
teu, se quiseres o que é nosso puxa da nota, que isto, meu amigo, a vida custa
a todos e está cara. E depois de uns gritos ou uma conversa muito educada que quase
sempre diz o que deve e o que não, cada um vai à sua vida a desejar que o outro
não lhe apareça na frente durante quilómetros de anos e faz espécie como é que
se dormiu tão a desejo com aquelazinha lá que interesse não tem nenhum e a
cabeça fede a caca de galinha, mas como é que eu não vi isto, a minha mãe bem me
avisou. E lá se deitam os dois ou mais a recomeçar.
Mas
é que não. Não é mesmo nada assim. Qual semelhança entre nome-pessoa e
casamento/união de facto. Para que conste, os casamentos do século XX, muito
cheios de nove horas e modernismo, há que Deus que têm de ser por amor. E depois
dão no que dão, está mais que sabido que amores eternos são mais difíceis de
encontrar que agulha em palheiro e onde há duas pessoas há duas opiniões. E
etc. Ora, com o nome não sucede tal. O nome ajeita-se à pessoa sem reclamar.
Ninguém ouviu um João com birra por pertencer a um mau feitio (mas devia), ou
um Ulisses a rebelar-se por ser de glamoroso vigor e calhar a um impávido anão,
ou um Álvaro Pais por pertencer a um xóninhas de metro e oitenta. Enfim, os
nomes governam-se com o que têm. Diria kant que pertencem ao mundo da natureza (estendo demais a natureza kantiana, mas
enfim) e sofrem as suas leis inflexíveis, uma das quais e não a menos
importante, é que são isentos de consciência e vontade. Julgo que esta asserção
torna credível a falta de rebelião por parte da nomenclatura. Ora, é sabido que
nomes fáceis induzem as crianças a serem pessoas de mente descomplicada. Nomes
difíceis, como Hermengarda ou Hermenegilda, só trazem trabalhos a quem os tem (aprender
a escrevê-los dá uma trabalheira), geradores que são de pessoas nodosas e mais
retorcidas que uma cama de bilros. Ora, ora, então e quem é como eu que me
chamo Isalinda. Nome sem jeito, Isalinda. Só tu, muito baixo, a voz a escorrer-me
ao coração, “Linda”. Toda a gente na escola a destacar-me as sílabas,
I-sa-lin-da. E foi aí que percebi que não me chamava Zalinda. A minha mãe que
Deus haja era a ti Zalinda e eu a Zalinda da ti Zalinda. No primeiro dia de escola
– dia sete de Outubro - a professora
solene a fazer a chamada, Isalinda!
Um silêncio fundo. E logo muitos pares de olhos virados a mim e a professora
numa impaciência, então…O Manuel
António a cutucar-me as costas, és tu; diz
presente. E eu ainda desajeitada, a esticar o pescoço para passar o aperto
de vergonha, os neurónios a tropeçar nos refegos do nome, presente. E por que seria que tínhamos de responder presente se a
professora não tinha ar de nos dar o que fosse e nem havia sinais de uma
prendinha. Chamava nomes uns atrás dos outros e toda a gente, “presente” e eu
ainda a cogitar que aquele “presente” também não podia ser igual ao de casa
quando íamos ali atrás de uma moita fazer o presente. Até me envergonhava
pensar isto, a escola era uma limpeza e havia lugares marcados e à porta
fechada para presentes desses. A professora pintava a boca e as unhas, cheirava
bem e usava meia de vidro, não era pessoa de se ajeitar capazmente atrás de uma
moita. Mas só imaginá-la em brancuras imprevistas me dava vontade de rir. O meu
parceiro, estás a rir de quê. Eu, de nada.
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