quinta-feira, 5 de março de 2015

Isalinda

Os nomes dizem, espelham-nos. De tanto nos chamarem por eles, pertencemos-lhes. Basta ver que nenhum bebé tem cara de ter seja que nome for. Chamamos-lhe o nome escolhido entre mil (listas e listas para às vezes acabarem as garotas a responder por Carla, Vanessa ou os dois a emparelhar) e ele não cola nem condiz. Olhamos a criança e vem-nos um remorso, o nome fica-lhe mal, sobra-lhe da figura, é de uma estranheza que raia o desconcerto. E depois, o tempo vai-o afeiçoando, pulindo aqui e ali arestas de vogais, prumos de consoantes, entranha até ao zénite em que a dupla, nome e criança, se pertencem mutuamente e não são um sem o outro. Esse é o momento em que a transfiguração ocorre: aquele é o único nome que serve, está à medida. Podem pensar, também é assim nos casamentos, as duas pessoas levam anos a burilar e a relação conseguida é estreita e biunívoca. O tanas. Levam tempo, as que levam. A maioria circunvaga os olhos pelas redondezas e por ali se perde ou corta-se numa esquina mais afiada de maus costumes e manda tudo às urtigas: que é impossível viver assim, que o outro lhe tolhe as liberdades, que mais assim e mais assado, e pega lá o que é teu, se quiseres o que é nosso puxa da nota, que isto, meu amigo, a vida custa a todos e está cara. E depois de uns gritos ou uma conversa muito educada que quase sempre diz o que deve e o que não, cada um vai à sua vida a desejar que o outro não lhe apareça na frente durante quilómetros de anos e faz espécie como é que se dormiu tão a desejo com aquelazinha lá que interesse não tem nenhum e a cabeça fede a caca de galinha, mas como é que eu não vi isto, a minha mãe bem me avisou. E lá se deitam os dois ou mais a recomeçar.

Mas é que não. Não é mesmo nada assim. Qual semelhança entre nome-pessoa e casamento/união de facto. Para que conste, os casamentos do século XX, muito cheios de nove horas e modernismo, há que Deus que têm de ser por amor. E depois dão no que dão, está mais que sabido que amores eternos são mais difíceis de encontrar que agulha em palheiro e onde há duas pessoas há duas opiniões. E etc. Ora, com o nome não sucede tal. O nome ajeita-se à pessoa sem reclamar. Ninguém ouviu um João com birra por pertencer a um mau feitio (mas devia), ou um Ulisses a rebelar-se por ser de glamoroso vigor e calhar a um impávido anão, ou um Álvaro Pais por pertencer a um xóninhas de metro e oitenta. Enfim, os nomes governam-se com o que têm. Diria kant que pertencem ao mundo da natureza  (estendo demais a natureza kantiana, mas enfim) e sofrem as suas leis inflexíveis, uma das quais e não a menos importante, é que são isentos de consciência e vontade. Julgo que esta asserção torna credível a falta de rebelião por parte da nomenclatura. Ora, é sabido que nomes fáceis induzem as crianças a serem pessoas de mente descomplicada. Nomes difíceis, como Hermengarda ou Hermenegilda, só trazem trabalhos a quem os tem (aprender a escrevê-los dá uma trabalheira), geradores que são de pessoas nodosas e mais retorcidas que uma cama de bilros. Ora, ora, então e quem é como eu que me chamo Isalinda. Nome sem jeito, Isalinda. Só tu, muito baixo, a voz a escorrer-me ao coração, “Linda”. Toda a gente na escola a destacar-me as sílabas, I-sa-lin-da. E foi aí que percebi que não me chamava Zalinda. A minha mãe que Deus haja era a ti Zalinda e eu a Zalinda da ti Zalinda. No primeiro dia de escola – dia sete de Outubro -  a professora solene a fazer a chamada, Isalinda! Um silêncio fundo. E logo muitos pares de olhos virados a mim e a professora numa impaciência, então…O Manuel António a cutucar-me as costas, és tu; diz presente. E eu ainda desajeitada, a esticar o pescoço para passar o aperto de vergonha, os neurónios a tropeçar nos refegos do nome, presente. E por que seria que tínhamos de responder presente se a professora não tinha ar de nos dar o que fosse e nem havia sinais de uma prendinha. Chamava nomes uns atrás dos outros e toda a gente, “presente” e eu ainda a cogitar que aquele “presente” também não podia ser igual ao de casa quando íamos ali atrás de uma moita fazer o presente. Até me envergonhava pensar isto, a escola era uma limpeza e havia lugares marcados e à porta fechada para presentes desses. A professora pintava a boca e as unhas, cheirava bem e usava meia de vidro, não era pessoa de se ajeitar capazmente atrás de uma moita. Mas só imaginá-la em brancuras imprevistas me dava vontade de rir. O meu parceiro, estás a rir de quê. Eu, de nada

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