segunda-feira, 9 de março de 2015

Zita do Caco

Entro na ponte a tempo do último carro, bendizendo o número de viaturas que me permitiu chegar. Sigo em direcção à pequena cabine e sento-me a olhar o parque automóvel em que o barco se transformou.  Alguns condutores abrem o vidro e ficam à mercê da frescura matinal. Há quem saia, se debruce na amurada a fazer-se vizinho do corrupio de gaivotas rente à água e regresse de jacto ao assento, quem não desgrude do telemóvel, quem adormeça ou relaxe, olhos fechados e cabeça apoiada no assento. Depois de um apito rouco, o barco sai da dormência, espevita de motor e avança molemente, trôpego em caminho de água. Inspiro. Acalma-me o cheiro a limos que infiltra, o ar pejado de vapor de água a fazer-se um com pestanas, sobrancelhas, cabelos. Bolhas minúsculas acumulam e engordam até escorrer em fio na superfície dos veículos enquanto a proa pede licença à massa aquosa e passa a desviá-la, dois lados a nascerem e os peixes de olhos crescidos, num alerta de barbatanas, as guelras como um fole, fuge, fuge. Suspiro quase feliz e relanceio o olhar. Surpreso, descubro por debaixo do mastro, mesmo na minha frente, no assento mais protegido do convés, a mulher do saco. A despeito da carga, chegou primeiro que eu e segura-a a seu lado, mão direita em cioso prolongamento do cesto. O cachecol cai-lhe a trouxe-mouxe uma ponta junto ao tornozelo quase a rasar as tábuas do chão, gorro e cabelos em desaguisada comicidade.  Estranha a pormenores e a mim, observa o rio com atenção escolar. Aproveito-lhe a distracção e escrutino-a. Tem a pose séria e paciente das mulheres que tudo podem e pouco querem. As rugas espraiam pelo rosto, qual semente em boa terra e a flacidez da pele acentua o austero do semblante que os olhos suavizam.  Senta-se direita, a fazer peito ao destino, viga mestra de vidas que a circundem. Desconhece que é escrava da história e ainda pena na assimetria das relações. Para ela o mundo é como é, nunca terá pensado em mudá-lo. E tudo isto o corpo lhe diz, desde a firmeza sôfrega e áspera das mãos a mover dedos riscados por cortes encardidos e unhas sujas e rentes, ao olhar directo de farol onde as sombras de sujeição petrificaram, passando pela amargura da boca, alheia a sorriso amplo e gargalhadas. A meio do rio, um compacto de névoa agride o espaço e a humidade pesa-lhe no cabelo que sobra dos abafos e pende inanimado sobre o cachecol. Quase a sentir-me um invasor de propriedade privada, saio e convido-a a entrar, que ali está melhor. Olha-me incrédula, sorriso contrafeito e curioso, num deslumbramento acanhado de rato de campo perdido na cidade
- Muito obrigada, mas eu ainda nunca tinha visto o mar, sabe? Não lhe conhecia o cheiro, nem o ventinho frio. Tão pouco sabia do nevoeiro aqui rentinho à água – e num desabafo inesperado – tão bonito andar assim no barco como se fôramos dentro de uma nuvem. O senhor não acha?
     Creio que só nesse momento a vi inteira. Seria da névoa que nos rodeava, mas pareceu-me que as sombras lhe fugiram dos olhos ao  descobrir o mundo  singelo e a sua beleza interdita. Ou de que os homens se interditam olhando-o sob o véu da sua mesma complexidade. Pareceu-me tão autêntico o comentário que dei por mim num aceno afirmativo. Não era possível que eu, pragmático convicto, que espavoria sonhos e devaneios, conseguisse imaginar-me dentro de uma nuvem. Para mim um barco no nevoeiro é um barco no nevoeiro. Mas o certo é que confirmara e que em duas passadas fechei a porta da cabine ora deserta e me debrucei sobre a humidade do banco a embeber as gotas de água com o lenço. Ouvia-se um rádio que divulgava o estado do trânsito na capital e, em fundo, a deslocação da água a fazer cama ao ronronar manso do motor.  Quase podíamos pensar que éramos nós dois e o barco sobre a água, tão difuso me pareceu então o mundo em que ela, motu próprio, se instalara. Sentei-me cosendo o casaco ao corpo, o saco a separar-nos, e pensei na loucura que era abandonar a cabine de passageiros para ficar ali a arrefecer e encharcar de humidade.

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