Entro
na ponte a tempo do último carro, bendizendo o número de viaturas que me permitiu
chegar. Sigo em direcção à pequena cabine e sento-me a olhar o parque automóvel
em que o barco se transformou. Alguns condutores
abrem o vidro e ficam à mercê da frescura matinal. Há quem saia, se debruce na
amurada a fazer-se vizinho do corrupio de gaivotas rente à água e regresse de jacto ao assento, quem não desgrude do telemóvel, quem adormeça
ou relaxe, olhos fechados e cabeça apoiada no assento. Depois de um apito rouco,
o barco sai da dormência, espevita de motor e avança molemente, trôpego em
caminho de água. Inspiro. Acalma-me o cheiro a limos que infiltra, o ar pejado
de vapor de água a fazer-se um com pestanas, sobrancelhas, cabelos. Bolhas
minúsculas acumulam e engordam até escorrer em fio na superfície dos veículos
enquanto a proa pede licença à massa aquosa e passa a desviá-la, dois lados a
nascerem e os peixes de olhos crescidos, num alerta de barbatanas, as guelras
como um fole, fuge, fuge. Suspiro quase feliz e relanceio o olhar. Surpreso,
descubro por debaixo do mastro, mesmo na minha frente, no assento mais
protegido do convés, a mulher do saco. A despeito da carga, chegou primeiro que
eu e segura-a a seu lado, mão direita em cioso prolongamento do cesto. O
cachecol cai-lhe a trouxe-mouxe uma ponta junto ao tornozelo quase a rasar as tábuas do chão, gorro e cabelos em desaguisada comicidade. Estranha a pormenores e a mim, observa o rio
com atenção escolar. Aproveito-lhe a distracção e escrutino-a. Tem a pose séria
e paciente das mulheres que tudo podem e pouco querem. As rugas espraiam pelo rosto, qual
semente em boa terra e a flacidez da pele acentua o austero do semblante que os
olhos suavizam. Senta-se direita, a
fazer peito ao destino, viga mestra de vidas que a circundem. Desconhece que é
escrava da história e ainda pena na assimetria das relações. Para ela o mundo é
como é, nunca terá pensado em mudá-lo. E tudo isto o corpo lhe diz, desde a
firmeza sôfrega e áspera das mãos a mover dedos riscados por cortes encardidos e unhas sujas e rentes, ao olhar directo de farol onde as sombras de sujeição petrificaram, passando
pela amargura da boca, alheia a sorriso amplo e gargalhadas. A meio do rio, um compacto de névoa agride o espaço e a humidade pesa-lhe no cabelo que sobra dos abafos e
pende inanimado sobre o cachecol. Quase a sentir-me um invasor de propriedade
privada, saio e convido-a a entrar, que ali está melhor. Olha-me incrédula,
sorriso contrafeito e curioso, num deslumbramento acanhado de rato de campo perdido na cidade
-
Muito obrigada, mas eu ainda nunca tinha visto o mar, sabe? Não lhe conhecia o cheiro, nem o ventinho frio. Tão pouco sabia do nevoeiro aqui
rentinho à água – e num desabafo inesperado – tão bonito andar assim no barco
como se fôramos dentro de uma nuvem. O senhor não acha?
Creio
que só nesse momento a vi inteira. Seria da névoa que nos rodeava, mas
pareceu-me que as sombras lhe fugiram dos olhos ao descobrir o mundo singelo e a sua beleza interdita. Ou de que os
homens se interditam olhando-o sob o véu da sua mesma complexidade.
Pareceu-me tão autêntico o comentário que dei por mim num aceno afirmativo. Não
era possível que eu, pragmático convicto, que espavoria sonhos e devaneios,
conseguisse imaginar-me dentro de uma nuvem. Para mim um barco no nevoeiro é um
barco no nevoeiro. Mas o certo é que confirmara e que em duas passadas fechei a
porta da cabine ora deserta e me debrucei sobre a humidade do banco a embeber as gotas de
água com o lenço. Ouvia-se um rádio que divulgava o estado do trânsito na
capital e, em fundo, a deslocação da água a fazer cama ao ronronar manso do motor.
Quase podíamos pensar que éramos nós
dois e o barco sobre a água, tão difuso me pareceu então o mundo em que ela, motu próprio, se instalara. Sentei-me cosendo o casaco ao corpo, o saco a separar-nos, e pensei na loucura que era abandonar a cabine de passageiros para ficar ali a arrefecer e encharcar de
humidade.
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