segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Na Bienal

Há coincidências. Afirmo-o a muitas vozes, em várias tonalidades. Se necessário, exemplificando. Foi por acaso que coincidimos com a bienal de Veneza. Abençoada sintonia! Por ela, eternizámos em fila indistinta, onde semelhávamos tortos e desordenados carreiros de formigas, um por bilheteira. Cogitei que não haveria muitos alemães em espera, o seu amor seriado pelo método decerto impediria os amontoados de gente, as zonas de fila  gorda e a desbordar de que não se entendia a existência. Ou os espaços inexplicáveis, buracos entre as gentes, que, suponho, insinuavam desconfianças na pituitária das pessoas em redor, cheiro mal; se calha, com a pressa, esqueci o desodorizante e o calor fez das suas; e as mais afoitas observavam disfarçadamente os pés, talvez tenha pisado cocó de cão e agora ninguém se aproxima. Ora, além do calor que demorava o passo na sombra e o estugava na soalheira, não há motivo para estas idiossincrasias de trazer por casa, que existem, em grande parte, casuais. E também porque os homens tendem a copiar-se uns aos outros. A cópia é um dos mais activos simplificadores do agir.  
Bom. A Bienal distribuía-se por vários lugares distintos: um jardim, as instalações gigantescas  pertencentes à marinha e vários palácios e praças da cidade. Refiro apenas a parte da bienal “plantada” no jardim, por interessante e prazeirosa. Um espaço com tudo que lhe pertence, apetitoso aos sentidos, acolhedor, propenso a desejos indefinidos. No início do jardim, enfileirei  por uma rua ladeada de árvores que me lembrou Serralves. Contudo, não repeti a sensação de pisar terreno conhecido e de ter vivido ali coisas boas e passadas. Não. Antes me certifiquei de estrear os passos. Por entre a frescura arborícola, espreitavam os pavilhões deste e daquele país, um busto ou outro a mirar-me do alto da sua compostura. Desconheço o critério que atribui edifício cativo a uns – nome  inscrito na pedra da fachada  – em detrimento de outros. Pode ser questão de antiguidade. Imagino, por exemplo, que a França seja bem antiga nestas andanças. Daí o nome do seu pavilhão talhado a escopo e martelo. Ou será relação de boa vizinhança...

Verifico-me incapaz de descrever ou avaliar o que vi. Não houve deslumbramentos, mas apreciações. A minha veia poética rejubilou com o pavilhão da China, onde dois ou três barcos sonhadores nos envolviam deveras com suas linhas e chaves em nuvem avermelhada de fios. Presumo que me deu alma passear incógnita e transparente em lugar tão aprazível, descansar num bar ao ar livre, estar entre pessoas desconhecidas, sem colisão. A bienal foi uma dor de pernas e a correspondente paz de espírito. Ser todo olhos, aliena muito de um homem. E a medida  dos anos requer cada vez mais o alheamento de se deixar diluir no observado, mergulhar. O artista cria e está inteiro na obra enquanto cria. Ao observador resta esse exercício de mergulho, olhos guiando a mente, a leveza a instalar. Talvez se chame prazer. A sensação mais próxima é a do viajante ajoujado que alija bagagem e, uma após outra, vai atirando as malas. Que continua caminho, pedestre entre pedestres, imerso na sensação de ser o único que quase voa.

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