Na Bienal
Há
coincidências. Afirmo-o a muitas vozes, em várias tonalidades. Se necessário, exemplificando.
Foi por acaso que coincidimos com a bienal de Veneza. Abençoada sintonia! Por
ela, eternizámos em fila indistinta, onde semelhávamos tortos e desordenados carreiros
de formigas, um por bilheteira. Cogitei que não haveria muitos alemães em
espera, o seu amor seriado pelo método decerto impediria os amontoados de gente,
as zonas de fila gorda e a desbordar de que
não se entendia a existência. Ou os espaços inexplicáveis, buracos entre as
gentes, que, suponho, insinuavam desconfianças na pituitária das pessoas em
redor, cheiro mal; se calha, com a pressa, esqueci o desodorizante e o calor
fez das suas; e as mais afoitas observavam disfarçadamente os pés, talvez tenha
pisado cocó de cão e agora ninguém se aproxima. Ora, além do calor que demorava
o passo na sombra e o estugava na soalheira, não há motivo para estas
idiossincrasias de trazer por casa, que existem, em grande parte, casuais. E
também porque os homens tendem a copiar-se uns aos outros. A cópia é um dos mais
activos simplificadores do agir.
Bom.
A Bienal distribuía-se por vários lugares distintos: um jardim, as instalações
gigantescas pertencentes à marinha e
vários palácios e praças da cidade. Refiro apenas a parte da bienal “plantada”
no jardim, por interessante e prazeirosa. Um espaço com tudo que lhe pertence, apetitoso
aos sentidos, acolhedor, propenso a desejos indefinidos. No início do jardim, enfileirei
por uma rua ladeada de árvores que me
lembrou Serralves. Contudo, não repeti a sensação de pisar terreno conhecido e de
ter vivido ali coisas boas e passadas. Não. Antes me certifiquei de estrear os
passos. Por entre a frescura arborícola, espreitavam os pavilhões deste e
daquele país, um busto ou outro a mirar-me do alto da sua compostura.
Desconheço o critério que atribui edifício cativo a uns – nome inscrito na pedra da fachada – em detrimento de outros. Pode ser questão de
antiguidade. Imagino, por exemplo, que a França seja bem antiga nestas andanças.
Daí o nome do seu pavilhão talhado a escopo e martelo. Ou será relação de boa
vizinhança...
Verifico-me
incapaz de descrever ou avaliar o que vi. Não houve deslumbramentos, mas apreciações. A minha veia poética rejubilou com o pavilhão da
China, onde dois ou três barcos sonhadores nos envolviam deveras com suas
linhas e chaves em nuvem avermelhada de fios. Presumo que me deu alma passear
incógnita e transparente em lugar tão aprazível, descansar num bar ao ar livre,
estar entre pessoas desconhecidas, sem colisão. A bienal foi uma dor de pernas e
a correspondente paz de espírito. Ser todo olhos, aliena muito de um homem. E a
medida dos anos requer cada vez mais o
alheamento de se deixar diluir no observado, mergulhar. O artista cria e está
inteiro na obra enquanto cria. Ao observador resta esse exercício de mergulho,
olhos guiando a mente, a leveza a instalar. Talvez se chame prazer. A sensação
mais próxima é a do viajante ajoujado que alija bagagem e, uma após outra, vai
atirando as malas. Que continua caminho, pedestre entre pedestres, imerso na
sensação de ser o único que quase voa.
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