sábado, 21 de novembro de 2015

Olívia

Olha garota, tu desculpa, mas é que tenho pavor a descobrir que morreste mesmo. À séria. Assim uma coisa de não estares em casa nunca mais e haver outras pessoas a morar no lugar que foi teu; de eu te procurar na rua de sempre que a minha baralhação não alcança; de os  alentejanos à beira do carro, a coçarem a cabeça por cima da boina, embatucados na resposta, uma fixidez mórbida aguardando reacção, morreu já vai para um ano.
E depois chego ao teu portão que dá sinais de sim e de não. Para que duram as coisas mais que nós, se depois levam que tempos a despir-se de hábitos, a despegar de cheiros, a entretecer a realidade. E pode que não. Sabes tu, na casa da minha avó, morta há que séculos, ainda uma flor ou outra plantada por sua mão. Palavra. Bom, as flores não são objecto de comparação, fazem o que querem. E aquelas, pelo visto, querem florir, renascer a cada primavera. Passo lá e os pés abrandam nos pedais, o guiador feito parvo a querer virar, dar a volta à casa e encostar no pilar do alpendre; e tenho de contrariar a minha vontade de anuir - até porque alguém a murou. Por entre o folhedo das árvores, espreito a selha onde lavava os pés, vestido e combinação a escorrer. E o meu avô, juro, está lá, virado ao gargalo do poço, todo mãos no golpe do balde. Às vezes, penso que devia fazer o mesmo contigo, regressar ao que deixaste. Metia gasolina e partia como dantes, Alentejo adentro. Depois de muito quilómetro, numa recta sem fim, passava a placa indicativa da Caridade noivando ao longe, e subia-me uma ternura só de olhá-la assim, aldeia tão pequenina e perdida na planície, à mercê sabe Deus de que maldades. E logo, logo, circundava a igreja matriz de rectas barras azuis, tão alentejano o deus que lá mora, anos a fio virado ao vagar da praça, a sofrer o áspero do vento que encana a esguedelhar árvores ou sufocando, lento e esbraseado como qualquer mortal, quando nem uma aragem corre e um inferno de calor assenta na terra desfalecida e semimorta. Mas isto saberás melhor que eu, Reguengos é a tua cidade.
Como fazer tal viagem, diz-me tu, amiga. Vá, ensina-me a tua ausência. Preparo o quê, para quem. Em quem penso no caminho. O que faria à beira daquele portãozinho pequeno a que já aprendi os truques. Desculpa, não sou capaz. Emendo, não tenho de ser capaz.
Aí tens, Olívia. É isso. Prefiro eternizar-te no lugar onde te visitei menos vezes do que devia. Mas as coisas boas são sempre a menos. Calha assim.
E afinal, a eternidade é essa coisa vaporosa e de nuvem, ou simplesmente não existe?  Bom. Se não existe, estou falando sozinha. Pra nada. Pra ninguém.   De novo. Portanto, mais uma vez jogo nas preferências: Em mim, existes sempre. Queres lugar melhor, Olívia? Não comes, não bebes, não dispendes. Ora muito bem. Sim senhor.
Pronto, tá bem, cansei-te. Vai lá apanhar solinho recostada numa nuvem. Ok, sim, guarda-me lugar que a vida é um rufo.

E porta-te, que não quero cá queixinhas dos santos

Sem comentários:

Enviar um comentário