segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Veneza só é ela antes e depois dos turistas. Sim, é verdade, também nós pertencíamos ao grupo, mas tivemos a sorte (dá pelo nome de Luís, a nossa sorte) de habitar entre os venezianos, frequentar-lhes os supermercados, passear na quietude das ruas libertas da chusma que desgarra a cidade.
Nada é igual a vaguear por Veneza ao anoitecer, quando os restaurantes acendem velas, as flores transbordam de janelas e amuradas e a água dos canais bruxuleia. Apesar dos pés doridos, que linda a Veneza nocturna, em seu romantismo sombrio, a quietude dos sottoportegos, chamando ao amor e ao roubo. À noitinha, os venezianos acendem luzes de casa e abrem portas e janelas. Por certo se debruçam a reconhecer a sua cidade. Nessa hora, a beleza das pontes amplia. Despidas de selfies e sorrisos emprestados, de abraços de fotografia e poses estudadas, são recorte que os olhos apetecem. Ali permanecem, arqueadas sobre os canais como um arrepio de amor. Algumas  são em ferro ligeiro e erguem-se em curvas delicadas, talvez arte nova. Sobre a água soturna e sombreada, há um enleio que comove no encanto de ligar duas margens. No fim de tarde, faz-se palpável a doçura morna que desprendem, amparo do silêncio que vai chegando.  Então, descem devagar as mãos da  penumbra e,  em desvelo materno, as vestem levemente.  Em breve serão meninas cabeceando sobre o canal.
 Mas a Veneza diurna é diversa e, em grande parte, um fartar de gente. Falo das hordas que  enchem as ruas a partir da estação de caminho de ferro ou do largo onde estacionam os autocarros. Do turista que chega pela manhã e some ao entardecer.
Miro a rua  da estação ferroviária, a rebentar de gente quase correndo, um jeito de desafio no corpo, como quem vem travar uma batalha e não respirar e absorver uma quota de beleza em liberdade concreta. Caminham intrépidos como se os monumentos possam fugir ou haja um génio maligno a contrariar intentos. Talvez a pressa lhes exista porque em Veneza as filas engrossam e são a ordem das coisas. E porque, na bagagem, guardam apenas algumas horas para tanta maravilha. Trazem olhos  antecipados e futuros, quase cegos para a circunstância. São multidões  fugazes mas densas, em ruas de beleza ímpar a que não acodem. Portas, janelas, arcadas e palácios de esquina escorrem desilusão e comentam em transparência triste, não nos notam, existimos?.  

Mas, e se alguém caísse, se sentisse indisposto... talvez passassem sobre, na tentativa de cumprir roteiro ou chegarem primeiro. E vêm os vendedores ambulantes, besouros colados  a jovens chinesas de cabelo alado a esvoaçar em pele branca e lábios de carmim que todos se franzem à insistência bacoca,  eles acompanhando-lhes o passo, braço estendido a entrechocar o vidro de colares e pulseiras, murano, murano... depois abrandam, desistem e acorrem ao encontro de novas e potenciais clientes. E são as bancadas de fruta montadas a meio das ruas e gente de saco plástico na mão, damascos , uvas e pêssegos em alegre camaradagem; e as meninas venezianas, alheadas do roldão, a deslizar no empedrado, morenos meneios de gôndola esbelta, golpe de elegância nativa que desmede. E ninguém para notar as flores no monte de cardos. E chapéus. Múltiplos vendedores de chapéus a sombrear a porcelana  das chinesinhas, a deitar-lhes o espelho, expressão de apreço fingido. E elas compram e seguem caminho, os cabelos de desenho animado  acamados ao rés do rosto, um leque novo tocado por cinco gotas de sangue. É manhã em Veneza.

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