Veneza
só é ela antes e depois dos turistas. Sim, é verdade, também nós pertencíamos ao grupo, mas tivemos a sorte (dá pelo nome de Luís, a nossa sorte) de habitar
entre os venezianos, frequentar-lhes os supermercados, passear na quietude das
ruas libertas da chusma que desgarra a cidade.
Nada
é igual a vaguear por Veneza ao anoitecer, quando os restaurantes acendem velas,
as flores transbordam de janelas e amuradas e a água dos canais bruxuleia. Apesar dos
pés doridos, que linda a Veneza nocturna, em seu romantismo sombrio, a quietude
dos sottoportegos, chamando ao amor e ao roubo. À noitinha, os venezianos
acendem luzes de casa e abrem portas e janelas. Por certo se debruçam a
reconhecer a sua cidade. Nessa hora, a beleza das pontes amplia. Despidas de selfies
e sorrisos emprestados, de abraços de fotografia e poses estudadas, são recorte que os olhos apetecem. Ali permanecem,
arqueadas sobre os canais como um arrepio de amor. Algumas são em ferro ligeiro e erguem-se em curvas delicadas, talvez arte nova. Sobre a água soturna e sombreada, há um
enleio que comove no encanto de ligar duas margens. No fim de tarde, faz-se palpável a doçura morna que desprendem, amparo do silêncio que vai chegando. Então, descem devagar as mãos da penumbra e, em desvelo materno, as vestem levemente. Em breve serão meninas cabeceando sobre o canal.
Mas a Veneza diurna é diversa e, em grande
parte, um fartar de gente. Falo das hordas que enchem as ruas a partir da estação de caminho
de ferro ou do largo onde estacionam os autocarros. Do turista que chega pela
manhã e some ao entardecer.
Miro a rua da estação ferroviária, a rebentar de
gente quase correndo, um jeito de desafio no corpo, como quem vem travar
uma batalha e não respirar e absorver uma quota de beleza em liberdade concreta. Caminham intrépidos
como se os monumentos possam fugir ou haja um génio maligno a contrariar
intentos. Talvez a pressa lhes exista porque em Veneza as filas engrossam e são a
ordem das coisas. E porque, na bagagem, guardam apenas algumas horas para tanta maravilha. Trazem olhos
antecipados e futuros, quase cegos para
a circunstância. São multidões fugazes
mas densas, em ruas de beleza ímpar a que não acodem. Portas, janelas, arcadas
e palácios de esquina escorrem desilusão e comentam em transparência triste,
não nos notam, existimos?.
Mas,
e se alguém caísse, se sentisse indisposto... talvez passassem sobre, na tentativa
de cumprir roteiro ou chegarem primeiro. E vêm os
vendedores ambulantes, besouros colados a jovens chinesas de cabelo alado a
esvoaçar em pele branca e lábios de carmim que todos se franzem à insistência
bacoca, eles acompanhando-lhes o passo, braço estendido a entrechocar o vidro de colares e pulseiras, murano, murano... depois abrandam, desistem e acorrem ao encontro de novas e potenciais clientes. E são as bancadas de fruta
montadas a meio das ruas e gente de saco plástico na mão, damascos , uvas e pêssegos em alegre camaradagem; e as meninas venezianas, alheadas do roldão, a
deslizar no empedrado, morenos meneios de gôndola esbelta, golpe de elegância nativa que desmede. E
ninguém para notar as flores no monte de cardos. E chapéus. Múltiplos vendedores
de chapéus a sombrear a porcelana das chinesinhas, a deitar-lhes
o espelho, expressão de apreço fingido. E elas compram e seguem caminho, os cabelos
de desenho animado acamados ao rés do rosto, um
leque novo tocado por cinco gotas de sangue. É manhã em Veneza.
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