quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália


Que poder detém uma carga de tralha! Não aprecio o Gran Canale, ou deixo os olhos espreitar  a vetusta Veneza enquanto, no cais,  semeados de bagagem, esperamos quem nos guie até casa.  Veneza labiríntica onde as ruas todas se assemelham, a maioria das casas univitelina com mais uma dúzia, pontes airosas em proliferação. Ali abundam, isso sim, recantos únicos. Porém, se intentarmos regressar a um deles, raro conseguimos. Neste momento, ainda ignoramos tudo isso, os meus pés e ténis enjoados de sobremalas, agradecidos de terra firme, a relaxar, já temíamos pertencer a um insecto voador. Encosto-me à parede do cais  a apaziguar-lhes o redondo contrafeito da biqueira, enquanto a Mariazinha da história, a mesma que se perdeu na floresta, miolos de pão engolidos pelos pássaros, me grita uma angústia lá do fundo, e se ninguém vier?!  Habitam-me sem transtorno estas personagens de contos, comprensíveis e femininas. Mas logo chega uma italiana de meia idade e cala temores, Mariazinha já concentrada na tarte de maçã que tem ao forno. A senhora é despachada, funcional  e atípica: baixa, loira, olho azul. Declinamos a oferta vazia de intenção, querem ajuda. Seguimo-la. Caminha em passo meio apressado, ou assim nos parece, mas o cortejo arrasta-se; em breve ocupo o meu lugar habitual, na traseira do grupo. Mentalmente, equaciono o material que transporto no fito de alijar algum na volta. E prometo a mim mesma que não acrescento peso, nem uma pena de galinha que seja. Após muita esquina a repetir decepções, é ali; não, é ali; ai, ainda não..., a dama detém-se e abre uma porta anódina, em tudo idêntica a outras. Um, "abre-te sésamo". Entramos num fresco saboroso, a penumbra silenciosa evola do tabuleiro quadriculado do chão. Sem que a tivéssemos visto, já a casa nos apetece.

            Veneza oferece-nos os melhores e mais confortáveis aposentos. Cidade tão medieval por fora como contemporânea no interior. Quem decorou a “nossa” casa esmerou-se na mistura entre ikea e objectos de estilo; foi requintado na escolha de cores e adereços, usou, no cortinado da entrada, as cores da cidade. E, muito importante, cuidou de bons colchões e camas largas. Em Veneza  estamos de gosto no conforto e requinte que todos desejamos em viagem quando nos passam as juventudes aventurosas de saco cama e tenda às costas. Somos presas desta harmonia cativante. Talvez a meio da semana, conversamos com Pietro, o proprietário que encontramos sentado a meio da escada, portátil em punho. O gigante explicou-nos que trabalha em Pequim e pretende que a net seja partilhável em todo o imóvel. Andou pelos quartos e mais no meu por ser ali que estava não sei o quê e etc. O edifício é todo seu e serve o mesmo intuito: abriga turistas. O meu progenitor de imediato lhe faria contas ao bónus mensal. Porém,  desejei -lhe apenas que continuasse bem por Pequim. A net à força toda só chegaria depois de sairmos. Ora bolas.

Deste dia primeiro, para lá do tropeço de bagagens, fica  a graça natural e miúda das árvores que arredondam e florescem, bandeiras de paz que cruzámos à saída do cais. Como a beleza pode ser simples! Depois  de cheirarmos a casa e a fazermos nossa de objectos, a saída bandeirante. Nas traseiras, junto à Piazza dei Mori (lá estão os três mouros a atestar), mesmo nas nossas costas (da casa, da casa), um palácio casado ao resto das habitações, algumas delas com roupa estendida sobre o canal, cuecas em fila indiana, blusas e outra roupa normal em aceno sorrateiro. Um palácio  a sério, ogivas de cordame a sombrear janelas rindo de alto, em opulência de cortinados; e o benefício de cais próprio e barco a motor resguardado. Provavelmente, o palazzo pertence a duques ou condes que, se espreitam o canal, dão de caras com as cuecas da vizinha e o mais que ela queira no estendal. Venecia é também isto.

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