quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Manhã em Veneza é este afã revolvido por enfileirar na praça de S. Marcus, no Palácio dos Doges, na Catedral... em tanto lugar onde a arte nos descentra e esparvece. Mas a verdade é que, quando a multidão ataca, já a manhã vai alta.
Venecia acorda bem mais cedo. E é vê-la a espreguiçar-se na hora desleixada das ruas mais conhecidas e transitadas. Banhadas de luz e quase desertas, encolhida a garridice dos toldos, não escondem o jeito dormente, ainda sob anestesia, de lugar noctívago. Quem as vê duvida de si, cabeça a um lado e a outro, devo ter-me enganado. Ao acaso de portas ainda cerradas, as esplanadas desolam, na modorra abandonada e quase grotesca dos lugares onde os bêbados apodreceram até ser manhã. Há cadeiras caídas, papeis de mesa rasgados, vasos de flores de banda, a geometria torta dos restaurantes é batom que desacertou da boca. Neste vento de desordem, reféns de horizontes caseiros, os empregados chegam amorfos, pernas bambas, mãos inábeis a levantar cadeiras tombadas no caminho, ainda tacteando a eficácia de gestos, não é este, ora esta. Molemente, entram a transmutar-se. E saem fardados e profissionais,  um desembaraço funcional que devolve a face  ao lugar.

            E nos supermercados, nas padarias, nas ruas onde, afinal, vive gente igual a nós? Acontece como em qualquer país europeu. Pessoas cumprimentam-se e aconselham este pãozinho, aquele bolo de manteiga, uma certa fruta bem madura, um determinado vegetal. Na entrada do supermercado, duas italianas de meia idade –  mais novas que eu – trocam uma receita que não lobrigo, olhar embebido  no guindaste da descarga de batata que provavelmente querem comprar; na caixa, uma criança faz birra, apetecia um doce que a mãe negou; eu engano-me mais uma vez no código de pesar a fruta e faço a empregada da caixa – tão linda e simpática – sair do lugar e ir ela mesma fazer o peso, o que atrasa toda a gente que está na fila; no átrio, duas garotitas comparam sandálias ou pés, cabeça baixa, fixas na função, fora do mundo. Lá fora, há gente quotidiana, a ir para qualquer lugar a que chama casa, sacos plástico na mão, equilibrando mercearias. As pontes do meu enleio já acordaram. E, vestidas de claridade desvelada, atentam no passo arrastado dos velhos, cuidam dos sacos que descansam sobre elas, dão bom dia ao ritmo tracejado da bengala que conhecem. E sorriem. Sinto-lhes o riso ténue e a complacência matinal. Mais tarde, serão apenas caminho e destino de lembranças. E essa posteridade não lhes vale um requebro.

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