Manhã
em Veneza é este afã revolvido por enfileirar na praça de S. Marcus, no Palácio
dos Doges, na Catedral... em tanto lugar onde a arte nos descentra e esparvece.
Mas a verdade é que, quando a multidão ataca, já a manhã vai alta.
Venecia acorda bem mais cedo. E é vê-la a espreguiçar-se na hora
desleixada das ruas mais conhecidas e transitadas. Banhadas de luz e quase
desertas, encolhida a garridice dos toldos, não escondem o jeito dormente,
ainda sob anestesia, de lugar noctívago. Quem as vê duvida
de si, cabeça a um lado e a outro, devo ter-me enganado. Ao acaso de portas ainda cerradas, as
esplanadas desolam, na modorra abandonada e quase grotesca dos lugares onde os bêbados
apodreceram até ser manhã. Há cadeiras caídas, papeis de mesa rasgados, vasos
de flores de banda, a geometria torta dos restaurantes é batom que desacertou da boca. Neste
vento de desordem, reféns de horizontes caseiros, os empregados chegam amorfos,
pernas bambas, mãos inábeis a levantar cadeiras tombadas no caminho, ainda tacteando
a eficácia de gestos, não é este, ora esta. Molemente, entram a transmutar-se.
E saem fardados e profissionais, um
desembaraço funcional que devolve a face ao lugar.
E nos supermercados, nas padarias, nas ruas onde, afinal, vive gente igual a nós? Acontece como em qualquer país
europeu. Pessoas cumprimentam-se e aconselham este pãozinho, aquele bolo de
manteiga, uma certa fruta bem madura, um determinado vegetal. Na entrada do supermercado, duas
italianas de meia idade – mais novas que
eu – trocam uma receita que não lobrigo, olhar embebido no guindaste da descarga de batata que
provavelmente querem comprar; na caixa, uma criança faz birra, apetecia um doce
que a mãe negou; eu engano-me mais uma vez no código de pesar a fruta e faço a
empregada da caixa – tão linda e simpática – sair do lugar e ir ela mesma fazer
o peso, o que atrasa toda a gente que está na fila; no átrio, duas garotitas comparam sandálias ou pés, cabeça baixa, fixas na função, fora do mundo. Lá fora, há
gente quotidiana, a ir para qualquer lugar a que chama casa, sacos plástico na mão, equilibrando mercearias. As pontes do meu enleio já acordaram. E, vestidas de claridade desvelada, atentam no passo arrastado dos velhos, cuidam
dos sacos que descansam sobre elas, dão bom dia ao ritmo tracejado da bengala
que conhecem. E sorriem. Sinto-lhes o riso ténue e a complacência matinal. Mais
tarde, serão apenas caminho e destino de lembranças. E essa posteridade não lhes
vale um requebro.
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