segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Um Agosto em Itália

Nada existe tanto como antes de existir. Algum poeta o terá dito. E não só os poetas, que se não fora o desejo das coisas, elas mesmas pouco nos interessavam e delas nada nos viria. Por isso, antes de Veneza é que ela nos existe. Fica-nos a oscilar no desejo de sabê-la, palmilhar ruas e pontes que lhe fazem o corpo de água  fugidia, conhecer-lhe o cheiro pagão dos cabelos, murmurar-lhe lábio a lábio o sinuoso dos braços de muitas portas, subindo o cotovelo até à humidade concava e retráctil da axila. Depois, humildes e prostrados, rodearmos a saia cigana que insinua pernas guardadoras de convictos segredos. E penetrarmos assim nos seus palácios, namorados à descoberta da intimidade que lhe existe sob a multidão que pulula. Ó Veneza misteriosa que sonhamos conhecer! Doce sonho de uma semana de Verão! Por ti despimos cabides e armários, puxamos malas e pacotes, fazemo-nos reiterados viajantes. Por ti, decidimo-nos a abandonar Ravena que tanto nos enleia em sua teia fasciculada. Ravena que nos reclama, uma mão cheia de história a agarrar-nos o pensamento. Em Ravena podíamos ser felizes.

 Mas já é outro dia e depois de alvorada expectante e despedidas para nunca mais mascaradas de ano que vem, sobreveio-nos a viagem para outra província, o Vêneto. No caminho, a paisagem um écran em mutação de cores, a exposição de verdes agrícolas perdendo para infiltrações de amarelos que rodeavam alguma desarrumação cénica, a remeter para desacertos pátrios e sua mescla insane de alhos e bugalhos. Nada de jardins cuidados e habitações de cor retocada. Convenci-me de que entrávamos  numa Itália menos abonada, a pobreza do gosto em desvarios de aqui e ali. A planura impunha-se esfumando o bucolismo acidentado e espigoso dos ciprestes. Em seu lugar, os choupos e a sua mansidão de folhagem sussurrando desculpas, boquinhas tímidas a entreabrir, somos assim. Os choupos são árvores pobres que existem sem porquê como todos os deserdados da vida. Vivem sem orgulho que os aprume e não lhes cabe a densidade colorida do cipreste. Existem verdurengos. Escusam a proximidade aquosa, mãe da frouxidão verde, quiçá da roupagem que se espalha sem direcção definida, remoinho de braços estendidos a nada ou, para quem prefira, estendem braços uns aos outros, permanecem de mão dada na sua vida de árvore. E amei os choupos por serem eles. Amei-os no verde sem arroubos, nos braços abertos e finos a entrelaçar, quase sem forças para o alto onde as folhas se penduram no à-vontade espaçoso que falha em qualquer arrogância cipreste.  Benditos sejam os choupos que adivinham e sinalizam as correntes subterrâneas de água doce. Benditos.

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