Nada
existe tanto como antes de existir. Algum poeta o terá dito. E não só os
poetas, que se não fora o desejo das coisas, elas mesmas pouco nos interessavam
e delas nada nos viria. Por isso, antes de Veneza é que ela nos existe.
Fica-nos a oscilar no desejo de sabê-la, palmilhar ruas e pontes que lhe fazem
o corpo de água fugidia, conhecer-lhe o
cheiro pagão dos cabelos, murmurar-lhe lábio a lábio o sinuoso dos braços de
muitas portas, subindo o cotovelo até à humidade concava e retráctil da axila.
Depois, humildes e prostrados, rodearmos a saia cigana que insinua pernas
guardadoras de convictos segredos. E penetrarmos assim nos seus palácios,
namorados à descoberta da intimidade que lhe existe sob a multidão que pulula. Ó
Veneza misteriosa que sonhamos conhecer! Doce sonho de uma semana de Verão! Por
ti despimos cabides e armários, puxamos malas e pacotes, fazemo-nos reiterados
viajantes. Por ti, decidimo-nos a abandonar Ravena que tanto nos enleia em sua
teia fasciculada. Ravena que nos reclama, uma mão cheia de história a
agarrar-nos o pensamento. Em Ravena podíamos ser felizes.
Mas já é outro dia e depois de alvorada expectante
e despedidas para nunca mais mascaradas de ano que vem, sobreveio-nos a viagem
para outra província, o Vêneto. No caminho, a paisagem um écran em mutação
de cores, a exposição de verdes agrícolas perdendo para infiltrações de amarelos
que rodeavam alguma desarrumação cénica, a remeter para desacertos pátrios e
sua mescla insane de alhos e bugalhos. Nada de jardins cuidados e habitações de
cor retocada. Convenci-me de que entrávamos
numa Itália menos abonada, a pobreza do gosto em desvarios de aqui e ali.
A planura impunha-se esfumando o bucolismo acidentado e espigoso dos ciprestes.
Em seu lugar, os choupos e a sua mansidão de folhagem sussurrando desculpas,
boquinhas tímidas a entreabrir, somos assim. Os choupos são árvores pobres que
existem sem porquê como todos os deserdados da vida. Vivem sem orgulho que os
aprume e não lhes cabe a densidade colorida do cipreste. Existem verdurengos. Escusam
a proximidade aquosa, mãe da frouxidão verde, quiçá da roupagem que se espalha
sem direcção definida, remoinho de braços estendidos a nada ou, para quem
prefira, estendem braços uns aos outros, permanecem de mão dada na sua vida de
árvore. E amei os choupos por serem eles. Amei-os no verde sem arroubos, nos
braços abertos e finos a entrelaçar, quase sem forças para o alto onde as
folhas se penduram no à-vontade espaçoso que falha em qualquer arrogância cipreste.
Benditos sejam os choupos que adivinham
e sinalizam as correntes subterrâneas de água doce. Benditos.
Sem comentários:
Enviar um comentário