Se duas pessoas se juntam e a conversa gira à volta do clima, quase
sempre é sintoma de mútuo embaraço. Falta-lhes assunto, desconhecem-se e fogem a “pôr o pé na argola” por abordagem de tema que mais exija. O estado do tempo passa, neste caso, de mera
condição meteorológica a entretenimento de minutos que se arrastam, lesmas
peganhentas e babosas que pegamos com a pinça climática.
No
entanto, conversar sobre o tempo pode ser assunto sério. A verdade é que não
será apenas a mente a tornar-nos humanos. Por via dela, temos conhecimento da
nossa sujeição à temporalidade, cuja não existência nos escandia de sermos homens. Portanto, o tempo, nas suas três instâncias, integra e categoriza-nos: anjo com pés de barro, infinitude limitada,
eternidade finita. Expressões bonitas de dizer mas difíceis de viver.
Mas, a condicionar o quotidiano, há ainda a questão temporal de ordem prática e comezinha. Por ela, o dia-a-dia dobra e faz mesuras, encurta por
medida, torna-se um rasgado sorriso ou um contrafeito esgar. A existência está
polvilhada de meteorologia e é escusado negar-lhe efeitos que dão pelo nome de “pequenos ajustes à realidade”. Ora,
as férias não se eximem a tais acertos
desacertados. Para mais em Itália, país de telha, que a descaso se enche de
relâmpagos e trovoadas sem destino, anteparo de rebentamentos líquidos em catadupa.
Foi assim, impreparados, que nos encontrou a tempestade do segundo dia na Bienal
de Veneza. Felizmente, algo no semblante da manhã me fez voltar a casa, em
busca do corta-vento. Ainda a caminho do celebrado vaporetto, a chuva fez a sua
entrada. Pé ante pé, em gotas grossas que breve adquiriram velocidade de atleta,
um ventinho cortante em passeio, a desmanchar-me a sombrinha de bolso que
coabita com o leque. E logo Veneza numa tristura de dar dó: os canais sozinhos e a escorrer, lonas rápidas sobre as gondolas, corridas de turista sem aviso.
No cais de embarque, gente esfriada, pés queixosos em sandália aberta, olhos
de inveja nas poucas senhoras avisadas, prováveis venezianas, de casaco,
cachecol, guarda chuva e sapatos; no frio do canal, crianças em corpo de
verão, molhadas e aos berros soluçados, nariz a escorrer, pegadas às pernas de
mães carregadas de malas, que surdinavam comentários a companheiros aselhas e
desasados enquanto as assoavam, inermes à sirene que pedia colo, bracitos ganga
acima, exigindo guindaste. Fixei a indiferença enlameada do gran canale e o vaporetto
a aproximar. Entrámos e à viagem desanuviada de outros dias sucedeu o
desconforto das correntes de ar, do choro infantil, de uma mãe benfazeja, transpirando
restos de woodstock, que cantava em afinado francês e profusão de gestos, uma canção que metia
galinhas e números em repetição acrescentada que calaram a chorinca de serviço. A garotita foi mesmo até ela, qual ratinho perseguindo a flauta mágica. A jovem mãe sentou-a a seu lado no chão do barco,
talvez sobre a sua saia larga, e continuou a actuação com a criança que tinha
no colo. Abençoada seja ela e a infinita paciência que tomou para si. Esta
mulher, mais ou menos despenteada, foi um sol na agonia da manhã.
E
porque uma desgraça nunca vem só (e uma sorte também não), mal saímos do barco,
o alarme do Luís a palpar o bolso, “ roubaram-me a carteira, merda”. Um palavrão
a desábito. Logo, um facto insofismável.
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