Passear
por S. Marcos
Em
Itália há duas mais valias seguras: a rara beleza da paisagem - urbana ou campestre
- e os gelados. Lembro-me que foi após um gelado extraordinário e uma travessia
a rememorá-lo contrariando os arquipélagos de multidão, que me iniciei na
Piazza di San Marco. Neste país, vira-se uma esquina vulgar no fim de uma rua
estreita e súbitos nos plantamos em local insuspeito e encantatório. San Marco
é também assim: ruas pequenas pejadas de lojas que vendem tudo, de vidros de Murano
a porta-chaves de cortiça, provavelmente alentejanos; de calzones italianos a hamburguers
americanos; de adereços típicos às imitações da alta costura. E gente. Muita
gente de passagem, mochila às costas, mapa na mão, olhos que não pertencem. Sim,
que o turista estrangeiro é jarra fora de sítio, peixe retirado às suas águas;
para além de tudo, salienta-o essa estranheza pregada à íris. E há gente que
hesita e pára a meditar as montras, talvez fazendo contas de cabeça, enquanto a
multidão lhe faz o contorno e desenha a silhueta a passos contrafeitos, agora
é que este papalvo se lembrou de parar. Alheios
ao engarrafamento que provocam, mergulham indecisos no interior da loja, mal sabendo que
basta entrar e já decidiram. São o
desjejum do comércio local, gente que compra
espanejando ilusões sobre a autenticidade dos muranos, das peles, dos
vestidos de marca, do papel de carta florentino, dos casacos, sapatos e malas
ciganas com assinatura. Ainda que a
tempos diversos, uns e outros desembocam
repentinos num lugar extraordinário, a piazza di San Marco. Que todos procuram
e a todos surpreende. Já em Florença eu me quedara imbecilizada face ao
inesperado da Loggia dei Lanzi, a retina incrédula e eu a estarrecer, será
verdade tanta beleza por metro quadrado?! Mas ali, em S. Marcos, deveria ter
gasto, uma a uma, as horas do dia. Ou melhor, todos os minutos de uma noite.
Porque, mal a manhã se aformoseia, logo os turistas tomam posse. E tanto se
perde no excessivo humano! Sendo certa a monumentalidade dos edifícios que
rodeiam e constituem a praça, a verdade é que relativizam se a multidão intromete.
Para onde se olhe há intrusos aos molhos: cabeças, e cabeças, e cabeças. No
calor ou no frio. Ao sol ou sem ele. No ar, o barulho de conversas e
chamamentos condensa em enorme vaga, imagino que os ouvidos dos cegos aborreçam
o ambiente, credo, este chinfrim ensurdece-me, dá-me cabo dos tímpanos, a
bengala a hesitar-lhes perto do chão, sigo em frente ou viro já aqui. Junto à Catedral, filas sinuosas lembram bichos a que não se vê rabo, corpo atirado à
soalheira (tudo é visita-paga, exceptuando a praça e o recinto de culto na
catedral). Entrados neste cenário, muito nos escapa: há gente intrometida entre
nós e o relógio romano, a obscurecer os pormenores das enormes colunas e impedir a esquadria da praça. A chusma desnivela e evapora lojas e restaurantes de charme. Viajante com presença de espírito eleva os olhos e deixa-os presos por lá, ao sabor de frescos e cúpulas de cintura torneada, rendados de pedra que impressionam.
Graças ao Luís e à Céu, experts em latitudes de multidão, eu e a praça encontrámo-nos num
bendito fim de tarde. Um, olá como está, mais atento. Dela guardei a atenção de
olhos que irradia para o inteiro de corpo e mente, nessa hora indistintos. Atolada
na riqueza de pormenores a toda a volta, atenta à sua delicada beleza, circunvaguei-a pelos quatro cantos. E
só não caí de joelhos porque eles não iam gostar e na minha idade respeitam-se os interesses do corpo.
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