terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Um Agosto em Itália

BURANO

No espesso de nuvens, Burano surgiu-nos crepuscular a meio da tarde. Uma aldeia de pescadores e bordadeiras. Molhada de corpo inteiro. E, por benção da chuva, pouco transitada. Linda, a aldeia de Burano. Talvez em dia soalheiro as gentes tolhessem o espírito que lhe vive nas frontarias coloridas à mão, cores fortes a encobrir torturas e nódoas negras; ou no entortar das torres de igreja, meias zonzas no horizonte, estou a descair, sinto que me falta terreno; ou nas flores em ponto de exclamaçãoque enlanguescem  por muros e paredes, rimamos, fazemos pendant. Talvez nem tivesse olhado as suas varandas onde, em tamanho natural,  moram santos contempladores; nas festas, fazem par com os da casa, são parentes debruçados a olhar os transeuntes, assinam com o apelido da família. Dependuradas do alumínio, virgens de olhar maternal em pose de benção eterna, braço meio soerguido; Cristos que nos observam inquisitivos ou em jeito tão de amor nos olhos vítreos que nos apetece subir e apertar-lhe a mão delicada, agradecer-lhe, muito prazer, Beatriz. Mas não rodam a cabeça se viramos a esquina, antes se quedam, no mesmo lampejo, olhando o vazio. E assim não vale. A custo abandonamos a ideia de subir a escada para um cumprimento sentido, a mente a insistir, deve ser naquela porta rosa, e depois, lá em cima, é só andar em frente e ficas virada ao Cristo.
Vagueámos perdidos e contentes naquele colorido luxuriante e desvaneci numa casita que arroxeava em dégradé. Dos roxos aos lilases rosados, acintava. Desde o leve estremecer da cortina que usam na porta de entrada – antes da porta – aos vasos e flores que a ladeavam, passando pelo secreto encosto das janelitas de madeira e tapete. Naquele golpe de paixão macerada à beira do canal, havia um misto de corpo de Cristo exposto, um Cristo jovem e frugal, a linha da cintura encimada pelo desenho da caixa torácica, firmeza de músculos que a morte não desfigura; ao invés,  os membros desprendem uma elegância pueril, quase feminina na sugestão de curvas. Assim a casa se oferecia ao olhar. Linda. E morta. Sem escamas de peixe a eclipsar pelo ralo das bacias, sem aventais e casacos grossos e gorros desmaiados no prego atrás da porta, sem o extenso de fio e o aparato dos bordados, sem tartamudeios e imprecações de hálito avinhado escada acima ou o  sururu linguarudo de vizinhanças afiadas. Ali, a pescadores e bordadeiras já sucedeu outra geração. Talvez as casas de Burano sejam moda e fique cara a sincronia da cor.

Embarcámos pela tardinha, encantados neste passeio de água. E foi do vaporetto que assistimos ao pé-ante-pé da noite, a paisagem a desfocar. Para lá das gotas no vidro, as árvores embrulhavam-se em seu silêncio denso, acinzentando sombras, esvaindo contornos. Passámos de novo pelos ancoradouros e só uma luzinha tremeluzia na água oscilante, um véu sombrio tragando o cenário de uma vez só. Nas ilhas, casas iluminadas viravam-se para dentro e iam pouco a pouco fechando os olhos. Junto à linha do horizonte, como quem chega um xaile aos ombros, o céu acabidava migalhas de sol. E eu talvez nem existisse, que a contemplação requer um estar raso acrescentado de silêncio.

Sem comentários:

Enviar um comentário