BURANO
No
espesso de nuvens, Burano surgiu-nos crepuscular a meio da tarde. Uma aldeia de
pescadores e bordadeiras. Molhada de corpo inteiro. E, por benção da chuva, pouco transitada. Linda, a aldeia de Burano. Talvez em dia soalheiro as
gentes tolhessem o espírito que lhe vive nas frontarias coloridas à mão, cores
fortes a encobrir torturas e nódoas negras; ou no entortar das torres de
igreja, meias zonzas no horizonte, estou a descair, sinto que me falta terreno; ou nas flores em ponto de exclamação, que enlanguescem por muros e paredes, rimamos, fazemos pendant.
Talvez nem tivesse olhado as suas varandas onde, em tamanho natural, moram santos contempladores; nas festas, fazem par com os da casa, são parentes
debruçados a olhar os transeuntes, assinam com o apelido da família. Dependuradas do alumínio, virgens de olhar maternal em pose de benção eterna, braço meio soerguido;
Cristos que nos observam inquisitivos ou em jeito tão de amor nos olhos vítreos que nos apetece
subir e apertar-lhe a mão delicada, agradecer-lhe, muito prazer, Beatriz. Mas
não rodam a cabeça se viramos a esquina, antes se quedam, no mesmo lampejo, olhando o vazio. E assim não vale. A custo abandonamos a ideia de
subir a escada para um cumprimento sentido, a mente a insistir, deve ser naquela
porta rosa, e depois, lá em cima, é só andar em frente e ficas virada ao
Cristo.
Vagueámos
perdidos e contentes naquele colorido luxuriante e desvaneci numa casita que
arroxeava em dégradé. Dos roxos aos
lilases rosados, acintava. Desde o leve estremecer da cortina que usam na porta de
entrada – antes da porta – aos vasos e flores que a ladeavam, passando pelo secreto encosto das janelitas de madeira e tapete. Naquele golpe de paixão macerada à beira do canal, havia um misto de corpo de Cristo exposto, um Cristo jovem e frugal, a linha da cintura encimada pelo desenho da caixa torácica, firmeza de músculos que a morte não desfigura; ao invés, os membros desprendem uma elegância pueril, quase feminina na sugestão de curvas. Assim a casa se oferecia ao olhar. Linda. E morta. Sem escamas de peixe a eclipsar pelo ralo das bacias, sem aventais e casacos grossos e gorros desmaiados no prego atrás da porta, sem o extenso de fio e o aparato dos bordados, sem tartamudeios e imprecações de hálito avinhado escada acima ou o sururu linguarudo de vizinhanças afiadas. Ali, a pescadores e bordadeiras já sucedeu outra geração. Talvez
as casas de Burano sejam moda e fique cara a sincronia da cor.
Embarcámos
pela tardinha, encantados neste passeio de água. E foi do vaporetto que assistimos ao pé-ante-pé da noite, a paisagem a desfocar. Para lá das gotas no vidro, as árvores embrulhavam-se em seu silêncio denso, acinzentando sombras, esvaindo contornos. Passámos de novo pelos ancoradouros e só uma luzinha tremeluzia na água oscilante, um véu sombrio tragando o cenário de uma vez só. Nas ilhas, casas iluminadas viravam-se para dentro e iam pouco a pouco fechando os olhos. Junto à linha do horizonte, como quem chega um xaile aos ombros, o céu acabidava migalhas de sol. E eu talvez nem existisse, que a contemplação requer um estar raso
acrescentado de silêncio.
Sem comentários:
Enviar um comentário