quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Conto de Natal

Os meus olhos devem ter assentido que continuou, é só uma boleiazinha, ele faz-lhe companhia e desce ali por Águas de Moura; depois lhe diz onde parar.- e numa espécie de ansiedade que não entendi – não se importa pois não? A despesa fica por conta da casa, deixe estar – acrescentou mal iniciei o gesto de puxar pela carteira. Pensei que seria bom ter companhia quase até casa e saiu-me um ora essa, traga lá a pessoa. Ele passeou-me olhos duvidosos e respondeu, já lá vai ter ao carro, descanse. Saí e, mal liguei o motor, um vulto nasceu das sombras e entrou. Olhei-o curioso. A meu lado estava um homem talvez mais novo que eu, suspensórios sobre camisa de pano vulgar, calça de cotim coçado que não lhe tapava a canela, um farrusco de mãos sobre o amarrotado da boina; não me parecia disposto a conversas. Perguntei-lhe se não tinha bagagem e acenou uma negativa. O carro fez-se à estrada e, no interior, o silêncio pesava. Percorremos uns bons dez quilómetros em mutismo absoluto, ele muito direito, quase a rasar o vidro da frente, fascinado pelo asfalto. Até que não aguentei e, para fazer conversa, lhe interroguei finalidades, vai a compras ou regressa a casa para passar a quadra? Ele olhou-me como se olha uma criança aborrecida que tudo pergunta e soletrou em rispidez, a compras. Fizemos mais dez quilómetros. E depois outros dez. Sentia-me cada vez mais incapaz de retomar conversa. De repente, sem mudar de posição, como se comentasse o estado do tempo, fugi do Pinheiro da Cruz. Com a crispação das mãos no volante, quase deixei o fiat resvalar para a valeta e amaldiçoei o Marques enquanto endireitava o carro. Porém, sem me dar tempo, continuou monocórdico, foi propositado; arranjaram uma estrangeirinha com um assalto e prenderam-me. Eu era lá capaz de roubar alguém – voltou-se para mim – querem estragar-me a vida. Nesse momento, as mãos afligiam num aperto à fazenda gasta da boina mudada em bóia de salvação. Rodei em silêncio alisando terreno para acrescentos imprevistos. E ele, olhe digo-lhe isto porque podemos encontrar a guarda por aí; a esta hora já eles sabem. Se o senhor está com medo deixe-me já aqui. Parei o carro na berma de um ermo sem luz e ele abriu a porta. Pensei que era melhor assim; escusava-me a trabalhos que podiam custar-me caro e tirar-me o emprego. Ele havia de chegar a qualquer lado. Além disso, desculpava-me,  podia ser uma pessoa perigosa. Mas antes que saísse, estendi o braço, segurei a porta entreaberta e perguntei, e afinal o que vai fazer hoje para aqueles lados? Ele ficou silencioso. Entristeceu-lhe o semblante. E já me preparava para largar a porta e deixá-lo seguir, quando murmurou, voz embargada, vou para casa, hoje é a noite de Natal. Acertei-lhe a data, mas a consoada é só amanhã, homem. E ele, não. A minha tem de ser hoje; se não for apanhado antes, amanhã de madrugada os camaradas passam-me para Espanha. Fechei a porta de golpe e pus o carro a trabalhar. Vamos embora, há-de ser o que Deus quiser. Nasceu-lhe no rosto um assomo de estranho sorriso  e acrescentou, e se uma patrulha nos fizer parar, é que Deus nunca quis assim tanta coisa para o meu lado. E nos cinquenta quilómetros que se seguiram engendrámos-lhe uma história. Quando inquiri, e não tem medo de ser apanhado em casa, olhe que a guarda é onde procura primeiro... respondeu-me no mesmo sorriso de pouco hábito, eu não disse que ia para minha casa. E não tive tempo para pensar mais nada que, na beira da estrada, dois jipes da GNR mandavam encostar todos os veículos. Abrandei enquanto o coração sobressaltava em batidas de catapum, catapum que temia se ouvissem cá fora. Baixei o vidro e preparei os documentos. O Guarda aproximou-se, o sinal batendo exasperâncias na polaina, vermelho para dentro verde para fora, vermelho para dentro verde para fora. Olhei o meu acompanhante e estava calmo, meio adormecido, um aldeão de consciência tranquila. Dentro de mim o coração estoirava violências sanguíneas num batuque que me deixava as têmporas a latejar e fazia temer pela segurança da voz.

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