Os
meus olhos devem ter assentido que continuou, é só uma boleiazinha, ele faz-lhe
companhia e desce ali por Águas de Moura; depois lhe diz onde parar.- e numa
espécie de ansiedade que não entendi – não se importa pois não? A despesa fica
por conta da casa, deixe estar – acrescentou mal iniciei o gesto de puxar pela
carteira. Pensei que seria bom ter companhia quase até casa e saiu-me um ora
essa, traga lá a pessoa. Ele passeou-me olhos duvidosos e respondeu, já lá vai
ter ao carro, descanse. Saí e, mal liguei o motor, um vulto nasceu das sombras e
entrou. Olhei-o curioso. A meu lado estava um homem talvez mais novo que eu, suspensórios
sobre camisa de pano vulgar, calça de cotim coçado que não lhe tapava a canela, um farrusco de mãos sobre o amarrotado da boina; não me parecia disposto a conversas.
Perguntei-lhe se não tinha bagagem e acenou uma negativa. O carro fez-se à
estrada e, no interior, o silêncio pesava.
Percorremos uns bons dez quilómetros em mutismo absoluto, ele muito direito,
quase a rasar o vidro da frente, fascinado pelo asfalto. Até que não aguentei e,
para fazer conversa, lhe interroguei finalidades, vai a compras ou regressa a
casa para passar a quadra? Ele olhou-me como se olha uma criança aborrecida que
tudo pergunta e soletrou em rispidez, a compras. Fizemos mais dez quilómetros.
E depois outros dez. Sentia-me cada vez mais incapaz de retomar conversa. De
repente, sem mudar de posição, como se comentasse o estado do tempo, fugi do Pinheiro
da Cruz. Com a crispação das mãos no volante, quase deixei o fiat resvalar para
a valeta e amaldiçoei o Marques enquanto endireitava o carro. Porém, sem me dar
tempo, continuou monocórdico, foi propositado; arranjaram uma
estrangeirinha com um assalto e prenderam-me. Eu era lá capaz de roubar alguém –
voltou-se para mim – querem estragar-me a vida. Nesse momento, as mãos afligiam
num aperto à fazenda gasta da boina mudada em bóia de salvação. Rodei em silêncio
alisando terreno para acrescentos imprevistos. E ele, olhe digo-lhe isto porque
podemos encontrar a guarda por aí; a esta hora já eles sabem. Se o senhor está
com medo deixe-me já aqui. Parei o carro na berma de um ermo sem luz e ele
abriu a porta. Pensei que era melhor assim; escusava-me a trabalhos que podiam
custar-me caro e tirar-me o emprego. Ele havia de chegar a qualquer lado. Além disso, desculpava-me, podia ser uma pessoa perigosa. Mas
antes que saísse, estendi o braço, segurei a porta entreaberta e perguntei, e
afinal o que vai fazer hoje para aqueles lados? Ele ficou silencioso.
Entristeceu-lhe o semblante. E já me preparava para largar a porta e deixá-lo
seguir, quando murmurou, voz embargada, vou para casa, hoje é a noite de
Natal. Acertei-lhe a data, mas a consoada é só amanhã, homem. E ele, não. A
minha tem de ser hoje; se não for apanhado antes, amanhã de madrugada os camaradas
passam-me para Espanha. Fechei a porta de golpe e pus o carro a trabalhar.
Vamos embora, há-de ser o que Deus quiser. Nasceu-lhe no rosto um assomo de estranho sorriso e acrescentou, e se uma patrulha nos fizer parar, é que Deus
nunca quis assim tanta coisa para o meu lado. E nos cinquenta quilómetros que
se seguiram engendrámos-lhe uma história. Quando inquiri, e não tem medo de ser
apanhado em casa, olhe que a guarda é onde procura primeiro... respondeu-me no
mesmo sorriso de pouco hábito, eu não disse que ia para minha casa. E não
tive tempo para pensar mais nada que, na beira da estrada, dois jipes da GNR mandavam
encostar todos os veículos. Abrandei enquanto o coração sobressaltava em batidas
de catapum, catapum que temia se ouvissem cá fora. Baixei o vidro e preparei os
documentos. O Guarda aproximou-se, o sinal batendo exasperâncias na polaina, vermelho
para dentro verde para fora, vermelho para dentro verde para fora. Olhei o meu
acompanhante e estava calmo, meio adormecido, um aldeão de consciência
tranquila. Dentro de mim o coração estoirava violências sanguíneas num batuque
que me deixava as têmporas a latejar e fazia temer pela segurança da voz.
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