Parei
no caminho para comer alguma coisa, esticar as pernas e descansar. O proprietário
do café já me conhecia e, se a freguesia não apertava, vinha de pano na
mão até à minha mesa e puxava conversa enquanto oficialmente a limpava.
Falávamos do tempo, do trabalho na base, de Setúbal onde, dizia ele, tinha
assentado praça, da família de cada um. No final, já éramos
íntimos, ele quase de cabeça colada à minha, antebraço na mesa e joelho apoiado na
cadeira em frente, o pano sujo a resvalar-me no prato. Depois descaía a perna, afastava o pano para um ângulo da mesa e, em segredo escondido, com boca bem pequenina, sentados frente a frente e muito sisudos, que assuntos sérios pedem pose e reflexão, falávamos de
política. Que é como quem diz, falávamos mal do governo; nenhum dos dois sabia
o que eram partidos políticos, mas ouvíamos falar nos comunistas que estavam
presos e que falar mal do governo dava o mesmo resultado que ser comunista: a haver uma denúncia, prendiam-nos. Mas agastava-nos que a maioria dos portugueses comesse
o pão que o diabo amassou. Vivia-se de boca fechada numa pobreza miserável. Tudo
faltava ao pobre: comida nos pratos, calçado, casacos quentes, médicos,
remédios e até uma cama onde dormir. Contudo, o período de trabalho ia do nascer ao pôr do sol e muita gente não chegava a frequentar a escola, que
então não era obrigatória, para tomar conta de irmãos mais novos ou começar
também a trabalhar na terra ou em qualquer fábrica. Naturalmente, no meio desta massa de gente desvalida e mal paga, que não tinha onde cair morta, havia os
que tinham quezília sem remédio a governo e governantes. Mas quase ninguém
abria a boca por medo à PIDE-DGS, a polícia política a mando do governo que,
vestida à civil, se disfarçava no meio do povo e espiava os descontentes, podendo
engavetar qualquer. Também sabíamos que alguém que fosse preso por causa da
política, não voltava a arranjar trabalho. Todas as pessoas que conheci tinham
medo da PIDE. E ainda hoje não encontro explicação para o facto de
discutir assunto para mim tão melindroso, com o taberneiro daquela aldeia à beira da estrada nacional. Mas há coisas
que não se explicam, apenas acontecem.
Quando
entrei no café, um petromax fosforecia a meio da casa, dependurado de uma viga do
tecto por uma gancheta de arame. A luz do candeeiro amarelava sobre pessoas e
objectos a adoecê-los por inteiro e era como se tudo que ali se encontrava tivesse encolhido
e perdido vida, os rótulos das garrafas que chispavam aos raios do sol, tão murchos que não se lhe percebia marca. Adentrei-me pela sala evitando encandear no foco de luz e chegou-me o fedor
peculiar do petróleo que arde, misturado ao cheiro de vinho a copo. Atrás do balcão, o Marques olhou-me com a pergunta
de sempre, o costume?, e fui lavar as mãos ainda em afirmativos de cabeça.
Quando regressei, já ele me tinha servido um prato de moelas e um traçadinho e
aproximava um ensaio de guardanapo. Lancei-me ao repasto enquanto voltava ao posto e atendia dois clientes. Mastiguei devagar, a dar-lhe
tempo para se fazer próximo e cumprirmos o ritual. Mas o homem demorava-se em
limpeza corrida no balcão, o pano pensativo, para cá-para lá, para cá-para lá.
Até que reparou na minha insistência por cima do ombro e se decidiu. Levantou a
passagem de madeira, veio andando de pano na mão e começámos a desfiar o catálogo de assuntos. Parecia-me meio constrangido, quiçá preocupado.
Tem alguém doente, atirei de chofre. Ele deitou um olho investigador ao café agora vazio e, num salto de várias alíneas, passou à posição de antebraço na mesa e perna na cadeira, a cabeça a colar
na minha e pediu-me de olhos redondos a engordar medos, preciso de um grande
favor.
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