BURANO
Depois
foi a procura do posto de polícia mais próximo, um sotaque brasileiro de aquisição marital a valer-nos o desengano sobre a hipotética recuperação de perdidos.
A sua complacência proporcionou-nos uma hora de galharda simpatia e, muito importante,
permitiu, via telefone, contactos
internacionais. Esgotado o nosso tempo de antena, os senhores agentes foram liminares
e convidaram-nos a sair. Cá fora, mirando
o local, ficou-nos a certeza de que, em Itália, a polícia se afadiga a guardar-se a si mesma, tal o aparato de
segurança interna existente num quartel, que, no exterior, se faz quase moradia
anónima. Ou seja, a máfia é a sério. Portanto.
Entretanto,
proprietárias ostensivas, chuva e trovoada assentavam sobre Veneza. Porém, hélas, os portugueses têm sempre sorte
no meio do azar, faltava-nos visitar o sector da Bienal que se encontrava na
Armada. Sob um tecto protector, íamos percorrê-lo a contento. Corremos os três,
a água a rodear-nos por todos os lados, e o recato na bienal foi-nos alívio e
quase céu.
Talvez
tenha sido o escuro do dia que me impactou. Porque me passaram pavilhões e
suas mostras de uma manhã. Mais me resta de Burano que visitámos após o almoço,
em viagem de beleza lavada e transparente, olhos a arregalar de espanto, que
é isto. Já tínhamos rumado a Murano, mas nada me preparara para esses postais
ímpares, plantados no caminho de Burano. Ilhotas de uma casa só, a chaminé acenando
invernias aconchegadas e, a seguir ao abraço de madeira que rodeava o lar, sôfrego
guardador de árvores e flores dependuradas, a miniatura de um cais. Sob a
chuva, era mais nítido o vagar desenhado das árvores, as mãos cansadas dos ramos em líquida prostração, entregues
aos elementos. No horizonte de chumbo, em ilhas de aqui e ali, um barquito
amarrado à sua sorte, a cobertura a negrejar plástico que um vento mais forte
espanta em barulhos nocturnos de flop, flop, flop e se perde no escuro, o plástico a engasgar na mão de um arbusto que o agarra e ele ainda estonteado, muito obrigada pela
atenção, não se vê nada, nem sei onde estou.
Não
há dúvida, o céu de depois da tempestade empresta à Terra o ar angelical que ela não
tem. Extasiei. Viajante resumida, sem corpo para frio, dores e pés
molhados, eu constava de mente e olhos. Ai
quem me dera ser assim mais tempo! Quem me dera essa dissolução latejante que
enquista na memória e, sendo ela, é já outra coisa. Porém, tê-la vivido é um
tudo no quase nada da vida humana. Dizia um poeta satisfeito de si, “Confesso
que vivi”. Referia-se a ter vivido variadas coisas e ter experimentado muita
diferença; ou seria antes ao viver infinito de Pessoa, a esse aturdir em realidade
mental tão pujante que anula o exterior. Não interessa. Neruda foi um só e
Pessoa idem. Mas os sentidos sem a mente são boca escancarada que não aprendeu
a mastigar. Que morre de fome e não sabe.
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